Plumas amarelas

À Theophilo A. Kneip.

In memoriam

O ruído musical da casa vizinha impediu o salto certeiro do gato sobre o canário no galho do limoeiro. A imobilidade dos olhos lunares do felino mentia algo de comovente e sincero, mesmo vidrado naquele singelo pássaro amarelo. Abrindo a porta da cozinha juntei-me ao zunzunzum musical da casa ao lado representando a divindade salvadora sobre o teatro da maldade. O canarinho incauto continuou forçado no galho, incapaz de grandes transportes, após tantos anos de cativeiro. As plumas amarelas ondulavam no tempo estacado que adormecia à tardinha.

- Aqui não haverá crime! Protestei ao felino que despertou da hipnose aquosa dos olhos grandes. O canário alçou um curto vôo até a pitangueira contígua. A mesma gaiola que achava o céu lindo, adormecia sorrindo, despertava cantando jazia estranhamente vazia.

Pelo corredor reconheci os passos da responsável pela fuga do canarinho. Avó Saloméia carregava o pote com água em direção a gaiola num espaço largo de distração. Passos do tempo nonagenário. Arrastei o gato escanchado em meus braços para que não cometesse homicídio doloso. O felino composto de pelo e indiferença, acochou o corpo em meu peito suado. Escondi-me.

Sem perceber a sutil ausência do pássaro, entre tantas ausências fixadas nos retratos antigos, depositou o cadinho com água na gaiola erma; deu meia-volta e sumiu satisfeita com a própria solicitude. Retornou para sala monologando o indecifrável canto murmurado dos velhos. A gaiola continuava aberta. Para espanto de menino o canário retornou suavemente ao seu posto, como se soubesse do polido amor, disposto a ordem suprema das coisas diárias.

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