Do espírito dos porcos

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A cidade está em polvorosa. Pelos arredores do povoado inteiro circula a nova pendenga local, o caso dos porcos de D. Firmina. A recém viúva está exatamente agora na sala do juiz, aos prantos, implorando ao magistrado a apreciação de seu caso.

– Excelência! – dizia a pobre senhora. – O barrão do senhor Quermezé não pode ser sacrificado agora. Por Deus, excelência, não permita!

– Calma, senhora! Ainda estamos apreciando o pedido... Hoje teremos nossa audiência de conciliação. Não se aperreie.

– Excelência! É que o senhor não entende. Minha porca está prenha e se o barrão for sacrificado antes do nascimento dos bacurinzinhos, todos os bichinhos morrerão! O senhor nunca ouviu falar disso aqui na região? É dito por todos os antigos que...

– Mas senhora, não há relação lógica nisso. A morte do barrão não vai interferir...

– Vai, sim! Vai, sim! – Vocifera a senhora enlutada, interrompendo o juiz. – Por favor, excelência! Já houve casos na cidade onde os bacurinzinhos morreram por causa da morte do pai... Por favor!

O magistrado solicita a entrada do senhor Quermezé.

– ‘Premissão’! – diz o homem do campo, o dono do barrão Tanhaii. – Vosmicê me chamou?

– Sente-se, senhor!

– Carece não, ‘dortô’!

– Pra quando o senhor pretende sacrificar o seu animal?

– O Tanhaii está muito gordo e velho. Já viveu demais da conta. Por mim ele já estava era morto ‘pra mode’ eu vender a carne e faturar uns ‘trocadim’, mas D. Firmina quase é que me bate quando me viu preparando o material pra sangrar o bicho.

– Você não tem é coração, homem de Deus! Se matar o bicho agora também mata os bacurinzinhos, filhos dele!

– Calma! Calma! – interveio o magistrado. – Senhor Quermezé. A D. Firmina me informou que há na cidade uma tradição de que o barrão morto antes do nascimento da prole implica a morte dos animaizinhos logo após o parto. É verdade?

– Vixe Maria do céu, Excelência! Agora vosmicê me deixou desaprumado. Que diabo que é prole e ‘impricar’? Estou me sentindo é um ‘barcurim’ também pela ‘ingnorança’ minha.

– Quero saber se o senhor sabe que se matar o seu barrão os filhos dele morrem também, é isso.

– Meu barrão nunca tinha cruzado com porca estranha. Sempre coloquei o bicho pra cruzar com as porcas de casa. Como nunca matei o bicho pra ver, não sei informar se é verdade, não senhor.

– Mas é, doutor! O povo diz que morre e não quero perder minha porquinha Tereré. Quem mandou o porco dele emprenhar a bichinha, ora!

– Que é isso D. Firmina! Meu ‘animá’ vive é solto no pasto. A senhora que cuide da sua porca!

– Eu quero agora é cuidar dos porquinhos que o senhor quer matar! Vou dar uns para o senhor quando a porquinha parir, homem de Deus!

– Esperem! Façamos assim – diz o juiz. – Em nome dos costumes, sentenciarei que o senhor, seu Quermezé, aguarde o nascimento dos porquinhos, sob pena de ser o responsável direto pelo óbito dos animais, em havendo morte. Para evitar problemas, o senhor vai esperar. CUMPRA-SE!

– Mas Excelência! Vosmicê não viu nem meu bicho! Ele pode morrer de velhice...

– Morre não! Morre não!

– Vamos correr o risco, senhor – sentenciou o juiz.

Alheios à discussão, Tanhaii e Tereré estavam enamorados comemorando o nascimento dos porquinhos de D. Firmina. Eram bichinhos lindos que se lambuzavam no chiqueiro de Quermezé.

D. Firmina chega a casa. Entra. Vai ao quintal. De repente, da casa de seu Quermezé, ouve-se o grito:

– Onde está a minha porquinha?!

– Está aqui, D. Firmina! Os bichos nasceram...

Hoje, vasculhando os arquivos do fórum, tive acesso a este caso onde os costumes nortearam as ações e a decisão do magistrado.

Tanhaii morreu antes de ser sacrificado. Tereré pariu novos porquinhos e a mística continua invadindo os tribunais da pacata cidade do interior nordestino.

Semana passada houve uma audiência para apurar a responsabilidade do coronel Jucá no inusitado problema causado pela urina de uma de suas vacas, a Dondoca. Conta a declarante que o mijo da vaca alaga o seu curral matando seus galos e galinhas por asfixia mecânica. Mais informações sobre o caso estão contidas nos autos do processo, que corre em segredo de justiça, para preservar a intimidade da multípara quadrúpede bem querente do ilustre fazendeiro.

Nijair Araújo Pinto

Fortaleza-CE, 26 de novembro de 2009.

16h40min

Nijair Araújo Pinto
Enviado por Nijair Araújo Pinto em 26/11/2009
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