O Morcegão

O Morcegão

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Mara era psicóloga e pedagoga.

Uma fera nas duas profissões.

E mesmo assim, achou por bem conhecer mais profundamente o mundo cristão.

Passou a estudar a vida de São Francisco de Assis, a quem carinhosamente chamava de “Franchesco”.

Assim.

Com o som bem italianado.

Absolutamente, não era carola.

Fazia seus estudos sobre “Franchesco”, como estudava Lacan ou Freud.

Levava sua vida profissional na mais perfeita ordem.

Ordem que gostaria de ter em sua vida pessoal.

Mas esta insistia em sair dos trilhos.

Sempre.

Mara não era de sair muito.

Mas quando recebia algum convite, caprichava no modelito. Arrumava os negros cabelos no salão, pintava as unhas de vermelho.

E lá ia ela.

Inevitavelmente, voltava pra casa indignada com a falta de educação do universo.

Um dia foi com a amiga a uma festa.

Festão.

Mara toda arrumada, vestido comprido, sandália de salto alto, coque no cabelo, ficou maravilhada com os arranjos do ambiente.

Em cada uma das mais de duzentas mesas havia um arranjo de flores e frutas.

Bananas, maçãs, kiwis, abacaxis, peras, nectarinas, morangos, enfim, uma centena de qualidade de frutas ornamentava o salão.

Muito tropical, pensou Mara, feliz da vida por estar ali.

Ao entrar, um bonito moço pediu-lhe os convites.

Mara entregou a ele os dois envelopes, recebendo-os de volta com um sorriso farto (e lindo) do porteiro mais gato do pedaço.

A noite promete, pensou Mara, mais feliz ainda por estar ali.

Música ao vivo.

Alta.

O repertório não começou bem.

Sem chance de alguém querer dançar com um som daquele.

Mara tentou relaxar e mentalizou: a próxima será melhor.

Nem a próxima, nem as demais.

O som era péssimo e ninguém se animou a dançar.

Mara olhava aturdida para aquela pista de dança e-nor-me.

E vazia.

Tinha ímpetos de jogar a decoração da festa no DJ.

Ao invés disso, agarrou o braço da amiga e falou:

- Não me enfeitei, que nem uma viola de festa, pra passar por isso!

Se a noite está perdida, pelo menos o sacolão da semana não estará.

Falando isso, saiu enchendo a bolsa de bananas, laranjas, peras e até um pedaço de melancia.

Mas foi o melão que deu problema.

Ao passar pelo porteiro-gato, ele, com um sorriso farto (e lindo), solicitou-lhe os convites de volta.

Como achar dois envelopinhos em meio a tanta laranja, manga e banana?

A bolsa pesava horrores.

Tentou equilibrá-la em uma das mãos, enquanto a outra procurava os danados.

Nem se tivesse feito treinamento em circo.

Foi morrendo de vergonha que viu um melão quicando no chão, seguido por três laranjas e um limãozinho.

Nunca mais falaria da falta de educação do universo.

Voltou para casa louca para esquecer aquela noite.

Foi dormir, não sem antes comer um pedaço de maçã...

Acordou de madrugada com um ventinho no rosto.

Levantou e fechou a janela.

Antes de pegar novamente no sono, sentiu uma brisa roçando seu braço.

- Raio de janela! Será que emperrou?

A janela estava fechadinha.

Ela mais do que depressa acendeu a luz.

No canto do quarto, do seu quarto, perto da cama, da sua cama, estava uma morcego e-nor-me!

Para conseguir gritar demorou bons segundos.

Com o susto, a voz não saía.

Pulou pela cama, alcançou a porta e saiu aos gritos pelo corredor do prédio.

Logo a vizinha de frente quis ver o que estava acontecendo.

E mais outra.

E mais outra.

Quando o síndico chegou, encontrou uma torre de Babel no corredor.

- Tem que ligar para a zoonoses!

- Zoonoses às três e meia da manhã?

- Então vamos chamar a polícia.

- Acho melhor o Corpo de Bombeiros.

- Quem tem coragem de entrar lá?

- Você tem uma vassoura com o cabo bem longo?

- Eu abro a janela com a vassoura e alguém cutuca o morcego. Quem sabe ele não sai por onde entrou?

- Esqueceu que morcego é cego?

- Deus me livre dessa coisa trombar em mim.

De repente, todos se calaram.

Deram pela falta da Mara.

- Cadê ela?

Foram encontrá-la confortavelmente instalada na sala de visitas de uma delas.

Lendo “Caras”.

- Você não vai fazer nada?

- Afinal o morcego está na sua casa!

- Na sua casa não! No seu quarto!

Mara olhou calmamente para elas e falou:

- Apesar do meu jeito franciscano de ser, apesar de adorar os bichinhos, o “irmão” morcego não me pertence! Não entro naquela casa enquanto ele não sair.

- Se mal lhe pergunte, aonde acha que vai dormir?

- Penso que minhas “irmãs” vizinhas terão um lugarzinho para esta pobre coitada, que teve a casa invadida.

- Ô Mara, vamos logo resolver esta história que tá todo mundo com sono.

Foi aí que o síndico entrou no apartamento de Mara.

Sem dizer uma palavra, pegou uma toalha no banheiro, entrou no quarto e a jogou em cima do intruso.

Apalpou para ter certeza que o tinha capturado e saiu dali com o asqueroso fardo.

Foram todas dormir com as janelas hermeticamente fechadas.

No dia seguinte, Mara acordou com a campainha da porta.

Alguém tinha chamado a zoonoses.

- Dona Mara, sou Virgínia da fiscalização sanitária. Onde está o morcego?

- Onde está? Como assim, onde está?

- Espero que a senhora esteja com ele em casa.

- Dona Cecília...

- Virgínia, dona Mara. Virgínia!

- Dona Virgínia, não sei se estou entendendo bem a pergunta. Acabei de acordar depois de uma noite péssima e acho que não estou escutando bem o que a senhora perguntou.

- Onde está o morcego?

- Dona Cecília...

- Virgínia, dona Mara. Virgínia!

- Que seja! Não faço a menor idéia de onde ele esteja.

- Podemos entrar para tentar achá-lo?

- Dona Cecília...

- Já falei que o meu nome é Vir-gí-ni-a!

- Não importa!

- Importa sim! Sabia que o nome é o bem mais precioso que uma pessoa tem?

- Vamos voltar ao morcego, dona...dona...

- V-i-r-g-í-n-i-a. Virgínia!

- Aceita um suco?

- Acho que cai bem.

- Vamos entrar então.

- Apartamento bonito o seu, heim? Arejado.

- É. Entra ar e morcegos.

- Achei que fosse só um.

- Foi.

- E onde ele está?

- Aceita mais suco?

- Onde ele está?

- Já disse. Não faço a menor idéia.

- Ele saiu pela janela?

- Ele saiu com o síndico.

- O síndico levou o morcego para onde?

- Não sei. Acho que pro lixo.

- Para o lixo???

- Para onde mais levaria o bicho?

- Dona Mara, o correto seria congelar a amostra.

- A senhora está tentando dizer que eu, depois de deixar cair um melão no pé do porteiro de uma festa, descobrir um morcego no meu quarto, ainda deveria colocá-lo no meu freezer? Vou dormir, acordar de novo e fingir que não escutei isso.

- É nossa obrigação cuidar da disseminação de doenças na cidade e o morcego é transmissor de muitas.

- E daí?

- Daí que já que não temos a amostra, teremos que levar a senhora.

Nem é preciso dizer que tiveram que chamar a polícia.

O caso só se resolveu no dia seguinte.

Acharam o morcego dentro do carrinho de brinquedo do filho da conhecida catadora de rua.

Quase tiveram que chamar a polícia de novo.

O menino queria morder quem se aproximasse do seu Batman.