O bar do seu Abílio era o típico reduto das grandes discussões nas tardes de domingo, sobre futebol, é claro. Depois dos jogos, aquele bando de homens maduros e pais de família, trabalhadores, esqueciam que eram tudo isso e marcavam presença para ali discutir os jogos, os resultados, as atuações de cada time, do juiz e dos bandeirinhas e, principalmente, para gozar com a cara de seus rivais.
E tudo isso acontecia num certo clima entre o amistoso e o hostil, mantendo-se nesse limite, porque, afinal, eram todos conhecidos, todos do mesmo bairro. É claro que não faltavam aquelas discussões exaltadas, ultrapassando os limites da cordialidade que, se não descambava para a briga descarada, é porque a turma do “deixa disso” estava sempre atenta e atuante.
Domingo de clássico entre Corinthians e Palmeiras, sendo que o verdão levara a melhor, um placar humilhante de 4 X 1 e com, o que é pior, a ajuda involuntária do árbitro que deixara de marcar um pênalti a favor do coringão logo no começo do jogo e validara um gol do verdão com um atacante em indiscutível impedimento. O Palmeiras fez logo os seus três gols no primeiro tempo e coube ao coringão apenas diminuir essa diferença com um golzinho chorado aos quarenta minutos do segundo tempo.
Juca, palmeirense, entra com o amigo Duda, esse santista, há muito tempo neutro, quer dizer, sem gozar e sem ser gozado por ninguém. Juca entra com pompa e circunstância, com um grito de “é o Verdão!” ao mesmo tempo que percorrendo o ambiente com os olhos, a fim de avistar os seus rivais preferidos, os derrotados daquela tarde, os corinthianos. E ficou extremamente satisfeito ao notar sentado no balcão do fundo, sozinho, Dito, corinthiano, bebendo tranquilamente sua cerveja e saboreando uma porção de lingüiça calabresa, acompanhada de pão francês cortado em fatias.
— Eita! Que a “gambazada” está tudo hoje de rabinho entre as pernas!
Disse isso olhando na direção de Dito, esperando logo que ele se abalasse, mas não, ele sorveu com calma mais um gole de sua gelada cerveja e fez um sinal com o dedo para que seu Abílio trouxesse outra garrafa, enquanto molhava o pão no molho da lingüiça calabresa.
— Ah! Vão ficar fazendo de conta que não foi nada essa lavada que levaram hoje, uma baita goleada. É sempre assim, quando ganham, já chegam aqui irritando a gente, mas quando perdem, não querem nem discutir nada...
Juca provocava Dito, queria ver o corinthiano roxo de raiva, queria descontar as tantas vezes que ele, discutindo futebol, o tinha deixado com raiva também. Nas discussões de futebol não há espaço para misericórdia, raiva com raiva se paga. Mas o Dito fazia que não era com ele, comia sua porção e bebia sua cerveja. Isso era injusto, pensava o Juca, pois a graça de irritar alguém é esse alguém ficar irritado.
— Esses torcedores do Corinthians são todos uns...
Ia dizer alguma coisa bem pesada, para ter início, enfim, uma acalorada discussão, quando Dito levantou calmamente os olhos, olhou em direção a ele e disse:
— Sua mãe é caminhoneira!
Juca, interrompido desta maneira com tão impensável frase, a princípio levou um susto, depois franziu o cenho como quem pensa numa questão muito difícil de resolver. O que diabos queria dizer aquela frase tão ridícula no meio de uma discussão sobre futebol?
— Olha aí! Já começa a apelar. É sempre assim, perdem no jogo, perdem a esportiva, a gente vem aqui trazer uma questão séria e o cara vai logo colocando a mãe no meio, ofendendo a mãe da gente.
— Mas ele não ofendeu ninguém, muito menos sua mãe — disse o Honório, que era caminhoneiro — caminhoneiro é uma profissão muito séria, muito digna, muito respeitada. E olha que tem hoje em dia bastante mulher por essas estradas aí, eu, em vinte anos de profissão, conheci bem umas seis.
— Sei disso, insistiu o Juca, mas acho que ele está usando algum código, é alguma gíria, deve significar outra coisa o que ele disse e, além do mais, minha mãe não é caminhoneira e sim professora!
— Ora, então isso não é motivo para se zangar, ora pois. Disse de lá do fundo seu Abílio, enquanto passava um pano no balcão, que entrava sempre nas discussões para botar panos quentes, como se fosse, além do dono do bar, presidente de todas as querelas que ali ocorriam. Se tua mãe não é caminhoneira e sim professora, não há motivo para zanga e é melhor deixar essa conversa de lado, senão ela desanda.
Mas nada do Juca se conformar, queria a discussão, humilhar o adversário derrotado, o rival tinha que ceder. Tanto que dirigiu ao Dito algumas ofensas, completando que ele sempre fora assim esquisito, que não se dava com ninguém e tal; mal terminava sua frase, o Dito, após outro gole de cerveja, olhou de novo para ele e disse:
— E sua avó é borracheira!
Juca ficou possesso. Tinha quase certeza de que aquilo agora só podia ser uma grave ofensa que ele não entendia, porque era feita de modo velado, alguma coisa Dito queria dizer com aquilo e estava a se divertir às custas de todos. Ficou tão enfezado que já partia para cima do corinthiano, mas foi segurado pelos que acompanhavam a pendenga, inclusive o Severino, dono da borracharia que ficava em frente ao bar. Severino segurava Juca e argumentava:
— E por acaso borracheiro também não é uma profissão honrada? Ora que se não fosse eu ninguém andava de carro aqui, neste bairro cheio de ruas esburacadas e com tanto pneu que gasta, rasga e fura. Sua avó não pode ser borracheira não? Minha patroa até que me dá uma mãozinha de vez em quando e ninguém fala mal dela.
— É que minha avó não é borracheira, ela é costureira; e esse sacripanta está querendo dizer algo com essas coisas...
— Ora! Se tua avó não é borracheira, bradou seu Abílio, é de novo um motivo para não te sentires ofendido, como não podes te ofender por te chamarem tua mãe de caminhoneira, pois que ela não é!
— Então eu posso te chamar de filho da puta, posto que tua mãe não é puta, não é mesmo, senhor Abílio? Disse o Juca já visivelmente irritado.
— Olha que agora tu começas a ficar abusado! Disse o seu Abílio.
Mas a questão é que Juca não se conformava. Tinha ido lá para irritar o Dito e este, mesmo sendo um rival perdedor, é que o irritava profundamente. Juca tentava achar um meio de reverter a situação, mas estava nervoso demais para raciocinar. Partiu para a agressão menos ética, dizendo que os corinthianos são todos uns iletrados, pobres, favelados... ia por essa via quando Dito deu-lhe mais uma olhada e fulminou:
— A sua tia tem pelos nas tetas!
Juca já partia com um taco de sinuca para cima do Dito, mas foi seguro desta feita pelo Duda, pelo caminhoneiro, pelo borracheiro e mais uns dois que assistiam divertidamente a querela. O mais infeliz foi o Duda, querendo apaziguar, piorou ainda mais a situação:
— Mas Juca, a sua tia tem mesmo pelos nas tetas, todo mundo sabe isso...
E seu Abílio:
— Pois... se ela tem mesmo os ditos pelos nas tetas é mais um motivo para o Juca não ficar tão aborrecido e nervoso...
— E tua esposa tem bigodes maiores do que os teus, por isso ser verdade, espero que não fiques aborrecido, senhor Abílio!
Juca estava completamente fora de controle. Duda e os outros, com muito custo, convenceram-no a se acalmar e abandonar aquela discussão, que só podia acabar em confusão. Juca conformou-se e foi para um outro canto do bar, numa mesa ali desocupada, a turma do deixa disso já veio com um copo de cerveja, um outro tinha pedido uma pinga, já saia um espetinho para agasalhar o estômago.
Enquanto isso, Dito já tinha pedido uma última cerveja, que tomava pausadamente, e mais um tanto de pão para terminar a porção de calabresa. E, quando tudo parecia que ia se acalmar, soltou mais uma para o Juca, que mesmo já se acalmando, não deixava de encarar o corinthiano com a cara mais feia desse mundo.
— O seu pai dança cancã!
Juca, em vez de ficar mais bravo, ficou confuso. Que era isso agora? O Dito estava doido, não falava coisa com coisa, pensou ele. Melhor deixar pra lá. Indagou ao Duda, sujeito lido, o que queria dizer, e Duda foi explicando que cancã era uma dança de origem francesa, desempenhada por mulheres, caracterizada pelos movimentos rápidos e por jogarem as dançarinas as pernas bem para o alto, enquanto mantém a saia levantada à frente. Juca já estava disposto a ignorar toda aquela besteira. Tinha vindo para irritar o rival e acabou saindo irritado, o que foi ridículo. Dito terminou sua última cerveja, depois da porção de calabresa, tinha pedido e já pago a conta, levantou-se e já saía do bar sem se despedir de ninguém, quando da porta olhou para trás, encarando o Juca com sua cara cínica e impassível e soltou a última:
— O seu pai dança cancã no puteiro da sua irmã!
Seu Abílio contabilizava os prejuízos, uma mesa e três cadeiras quebradas, dois tacos de sinuca, treze garrafas de cerveja, oito copos, fora alguns pratos, saleiros, paliteiros. Tudo bem isso tudo, ele receberia dos fregueses. O que intrigava agora seu Abílio vinha de sua terrível lógica, tendo observado que Juca ficara notadamente nervoso, supostamente era por ter uma família assim tão estranha como tinha ficado provado que tinha.
E tudo isso acontecia num certo clima entre o amistoso e o hostil, mantendo-se nesse limite, porque, afinal, eram todos conhecidos, todos do mesmo bairro. É claro que não faltavam aquelas discussões exaltadas, ultrapassando os limites da cordialidade que, se não descambava para a briga descarada, é porque a turma do “deixa disso” estava sempre atenta e atuante.
Domingo de clássico entre Corinthians e Palmeiras, sendo que o verdão levara a melhor, um placar humilhante de 4 X 1 e com, o que é pior, a ajuda involuntária do árbitro que deixara de marcar um pênalti a favor do coringão logo no começo do jogo e validara um gol do verdão com um atacante em indiscutível impedimento. O Palmeiras fez logo os seus três gols no primeiro tempo e coube ao coringão apenas diminuir essa diferença com um golzinho chorado aos quarenta minutos do segundo tempo.
Juca, palmeirense, entra com o amigo Duda, esse santista, há muito tempo neutro, quer dizer, sem gozar e sem ser gozado por ninguém. Juca entra com pompa e circunstância, com um grito de “é o Verdão!” ao mesmo tempo que percorrendo o ambiente com os olhos, a fim de avistar os seus rivais preferidos, os derrotados daquela tarde, os corinthianos. E ficou extremamente satisfeito ao notar sentado no balcão do fundo, sozinho, Dito, corinthiano, bebendo tranquilamente sua cerveja e saboreando uma porção de lingüiça calabresa, acompanhada de pão francês cortado em fatias.
— Eita! Que a “gambazada” está tudo hoje de rabinho entre as pernas!
Disse isso olhando na direção de Dito, esperando logo que ele se abalasse, mas não, ele sorveu com calma mais um gole de sua gelada cerveja e fez um sinal com o dedo para que seu Abílio trouxesse outra garrafa, enquanto molhava o pão no molho da lingüiça calabresa.
— Ah! Vão ficar fazendo de conta que não foi nada essa lavada que levaram hoje, uma baita goleada. É sempre assim, quando ganham, já chegam aqui irritando a gente, mas quando perdem, não querem nem discutir nada...
Juca provocava Dito, queria ver o corinthiano roxo de raiva, queria descontar as tantas vezes que ele, discutindo futebol, o tinha deixado com raiva também. Nas discussões de futebol não há espaço para misericórdia, raiva com raiva se paga. Mas o Dito fazia que não era com ele, comia sua porção e bebia sua cerveja. Isso era injusto, pensava o Juca, pois a graça de irritar alguém é esse alguém ficar irritado.
— Esses torcedores do Corinthians são todos uns...
Ia dizer alguma coisa bem pesada, para ter início, enfim, uma acalorada discussão, quando Dito levantou calmamente os olhos, olhou em direção a ele e disse:
— Sua mãe é caminhoneira!
Juca, interrompido desta maneira com tão impensável frase, a princípio levou um susto, depois franziu o cenho como quem pensa numa questão muito difícil de resolver. O que diabos queria dizer aquela frase tão ridícula no meio de uma discussão sobre futebol?
— Olha aí! Já começa a apelar. É sempre assim, perdem no jogo, perdem a esportiva, a gente vem aqui trazer uma questão séria e o cara vai logo colocando a mãe no meio, ofendendo a mãe da gente.
— Mas ele não ofendeu ninguém, muito menos sua mãe — disse o Honório, que era caminhoneiro — caminhoneiro é uma profissão muito séria, muito digna, muito respeitada. E olha que tem hoje em dia bastante mulher por essas estradas aí, eu, em vinte anos de profissão, conheci bem umas seis.
— Sei disso, insistiu o Juca, mas acho que ele está usando algum código, é alguma gíria, deve significar outra coisa o que ele disse e, além do mais, minha mãe não é caminhoneira e sim professora!
— Ora, então isso não é motivo para se zangar, ora pois. Disse de lá do fundo seu Abílio, enquanto passava um pano no balcão, que entrava sempre nas discussões para botar panos quentes, como se fosse, além do dono do bar, presidente de todas as querelas que ali ocorriam. Se tua mãe não é caminhoneira e sim professora, não há motivo para zanga e é melhor deixar essa conversa de lado, senão ela desanda.
Mas nada do Juca se conformar, queria a discussão, humilhar o adversário derrotado, o rival tinha que ceder. Tanto que dirigiu ao Dito algumas ofensas, completando que ele sempre fora assim esquisito, que não se dava com ninguém e tal; mal terminava sua frase, o Dito, após outro gole de cerveja, olhou de novo para ele e disse:
— E sua avó é borracheira!
Juca ficou possesso. Tinha quase certeza de que aquilo agora só podia ser uma grave ofensa que ele não entendia, porque era feita de modo velado, alguma coisa Dito queria dizer com aquilo e estava a se divertir às custas de todos. Ficou tão enfezado que já partia para cima do corinthiano, mas foi segurado pelos que acompanhavam a pendenga, inclusive o Severino, dono da borracharia que ficava em frente ao bar. Severino segurava Juca e argumentava:
— E por acaso borracheiro também não é uma profissão honrada? Ora que se não fosse eu ninguém andava de carro aqui, neste bairro cheio de ruas esburacadas e com tanto pneu que gasta, rasga e fura. Sua avó não pode ser borracheira não? Minha patroa até que me dá uma mãozinha de vez em quando e ninguém fala mal dela.
— É que minha avó não é borracheira, ela é costureira; e esse sacripanta está querendo dizer algo com essas coisas...
— Ora! Se tua avó não é borracheira, bradou seu Abílio, é de novo um motivo para não te sentires ofendido, como não podes te ofender por te chamarem tua mãe de caminhoneira, pois que ela não é!
— Então eu posso te chamar de filho da puta, posto que tua mãe não é puta, não é mesmo, senhor Abílio? Disse o Juca já visivelmente irritado.
— Olha que agora tu começas a ficar abusado! Disse o seu Abílio.
Mas a questão é que Juca não se conformava. Tinha ido lá para irritar o Dito e este, mesmo sendo um rival perdedor, é que o irritava profundamente. Juca tentava achar um meio de reverter a situação, mas estava nervoso demais para raciocinar. Partiu para a agressão menos ética, dizendo que os corinthianos são todos uns iletrados, pobres, favelados... ia por essa via quando Dito deu-lhe mais uma olhada e fulminou:
— A sua tia tem pelos nas tetas!
Juca já partia com um taco de sinuca para cima do Dito, mas foi seguro desta feita pelo Duda, pelo caminhoneiro, pelo borracheiro e mais uns dois que assistiam divertidamente a querela. O mais infeliz foi o Duda, querendo apaziguar, piorou ainda mais a situação:
— Mas Juca, a sua tia tem mesmo pelos nas tetas, todo mundo sabe isso...
E seu Abílio:
— Pois... se ela tem mesmo os ditos pelos nas tetas é mais um motivo para o Juca não ficar tão aborrecido e nervoso...
— E tua esposa tem bigodes maiores do que os teus, por isso ser verdade, espero que não fiques aborrecido, senhor Abílio!
Juca estava completamente fora de controle. Duda e os outros, com muito custo, convenceram-no a se acalmar e abandonar aquela discussão, que só podia acabar em confusão. Juca conformou-se e foi para um outro canto do bar, numa mesa ali desocupada, a turma do deixa disso já veio com um copo de cerveja, um outro tinha pedido uma pinga, já saia um espetinho para agasalhar o estômago.
Enquanto isso, Dito já tinha pedido uma última cerveja, que tomava pausadamente, e mais um tanto de pão para terminar a porção de calabresa. E, quando tudo parecia que ia se acalmar, soltou mais uma para o Juca, que mesmo já se acalmando, não deixava de encarar o corinthiano com a cara mais feia desse mundo.
— O seu pai dança cancã!
Juca, em vez de ficar mais bravo, ficou confuso. Que era isso agora? O Dito estava doido, não falava coisa com coisa, pensou ele. Melhor deixar pra lá. Indagou ao Duda, sujeito lido, o que queria dizer, e Duda foi explicando que cancã era uma dança de origem francesa, desempenhada por mulheres, caracterizada pelos movimentos rápidos e por jogarem as dançarinas as pernas bem para o alto, enquanto mantém a saia levantada à frente. Juca já estava disposto a ignorar toda aquela besteira. Tinha vindo para irritar o rival e acabou saindo irritado, o que foi ridículo. Dito terminou sua última cerveja, depois da porção de calabresa, tinha pedido e já pago a conta, levantou-se e já saía do bar sem se despedir de ninguém, quando da porta olhou para trás, encarando o Juca com sua cara cínica e impassível e soltou a última:
— O seu pai dança cancã no puteiro da sua irmã!
Seu Abílio contabilizava os prejuízos, uma mesa e três cadeiras quebradas, dois tacos de sinuca, treze garrafas de cerveja, oito copos, fora alguns pratos, saleiros, paliteiros. Tudo bem isso tudo, ele receberia dos fregueses. O que intrigava agora seu Abílio vinha de sua terrível lógica, tendo observado que Juca ficara notadamente nervoso, supostamente era por ter uma família assim tão estranha como tinha ficado provado que tinha.