Brasília não faz política -- os políticos é que fazem.

Nasci no Rio e passei toda a minha infância por lá. Mas com 13 pra 14 anos vim com a minha família morar em Brasília.

No começo estranhei muitíssimo esta cidade moderna, onde os prédios são chamados de "blocos" e ficam separados entre si por largas faixas gramadas e arborizadas, assim como as largas pistas retas que cruzam a cidade de norte a sul. Onde não existem bairros, mas Asas e Lagos e cidades-satélites. As lojas, padarias, farmácias, bares, restaurantes e lanchonetes concentram-se nas ruas comerciais das entrequadras e na Avenida W3. E as escolas na W5 e na L2. As embaixadas, os hospitais e clínicas, as oficinas, os quartéis, tudo tem um setor só pra eles.

Pois é. Aqui as ruas e quadras e blocos não têm nomes, como nas outras cidades. E eu me perdia pelas SQS's e SQN's, pelos Blocos de A a J-K, pelas L2 Sul e Norte, pelas CLN e CLS, SCS e SCN, SHIS e SHIN, QI's e QL's, SMPW, Eixinhos Leste e Oeste, Eixão Sul e Eixão Norte, Esplanada e Lagos Sul e Norte. E, pra piorar, via-se pouca gente andando nas ruas. Naquele tempo, as árvores ainda eram poucas e pequenas, havia muitas quadras por serem edificadas e urbanizadas, poucos prédios no Centro -- portanto, havia grandes espaços abertos expondo a árida terra vermelha -- e o trânsito era ralo feito os cabelos do Serra.

Além de todas as novidades arquitetônicas e urbanísticas, causou-me impacto a frieza aparente da população em geral. Mas isso durou só até começarem as aulas. Fui estudar numa escola que se chamava Elefante Branco e esse nome me pareceu o maior barato, pelo que tinha de diferente e sutilmente contestador. Logo fiz um monte de amigos, gente que vinha de todos os lugares do Brasil e até alguns estrangeiros. Comecei a prestar atenção nos diversos sotaques e repertórios linguísticos, nas diversas culturas e hábitos, nas diferenças de biotipo. E essa variedade toda me fascinava e encantava pra caramba!

Não passou muito tempo e me descobri caindo de amores pela cidade. Ia ao Rio em viagem de férias e, na volta, percebia que estava com saudades daqui. Já me considerava brasiliense de corpo e alma.

Diziam que por aqui não havia diversão. No entanto, nos divertíamos muito jogando vôlei pelos gramados, tocando violão e cantando com a turma, andando de bicicleta pela quadra, indo ao cinema e às lanchonetes da rapaziada nos finais de semana. Sem contar as inúmeras cachoeiras que há em volta da cidade, onde íamos acampar ou apenas passear em bando. E os que moravam no Lago, com frequência organizavam churrascos e festas. E ainda tinham os bailes nos clubes. Sem contar que rolavam altos shows -- vieram se apresentar aqui Elis Regina e Ivan Lins, Os Mutantes, Os Novos Baianos, os Doces Bárbaros, Luis Melodia, Clementina de Jesus, Macalé e Moreira da Silva, Paulinho da Viola, Sueli Costa, Sá, Rodrix e Guarabira, Egberto Gismonti, Sivuca, entre tantos outros. Do teatro e da dança, vieram os grupos Asdrúbal Trouxe o Trombone, Jorge Antunes, Grupo Corpo, Momix entre tantos mais.

Foram surgindo os artistas e músicos locais, como o grupo de teatro do talentoso e original Hugo Rodas, do meu amigo Fernando Villar, o riponguérrimo e divertidíssimo grupo musical Liga Tripa, Renato Matos, a família Ernest Dias, cada um mais talentoso do que o outro. Mais tarde, surgiram as bandas de rock Aborto Elétrico, Blitz 69 entre outras, que originaram as nacionalmente famosas Legião Urbana, Capital Inicial e Plebe Rude. Apareceram a Cássia Eller e a Zélia Duncan. E sempre houve as maravilhosas apresentações dos quartetos, orquestras de câmara, orquestras sinfônicas, duos e trios os mais variados, no auditório da Escola de Música e no Teatro Nacional, difundindo a música erudita da melhor qualidade. Ah, e o Clube do Choro, reunindo e formando chorões do maior gabarito, daqui e de fora. Jazz, blues, samba, maracatu e o escambau, podia-se escolher.

Brasília favorecia a contemplação e a vivência artística, alimentadas pela riquíssima variedade cultural e o contato próximo possibilitado pelas dimensões provincianas de uma capital com hábitos cosmopolitas e metropolitanos.

Muitos dos pais dos meus amigos eram profissionais liberais -- arquitetos, engenheiros, advogados, médicos, artistas plásticos -- ou comerciantes. Muitos eram funcionários públicos com veia artística pra música ou pra literatura. Muitos eram professores. Alguns eram militares. E poucos, muito poucos entre eles eram políticos ou tinham ligação direta com a alta cúpula política. Tanto que só nos lembrávamos dos nossos indesejáveis "vizinhos" através da imprensa. E, claro, todos nós éramos liberais e com tendências esquerdistas de todos os matizes. Repudiávamos a ditadura e contestávamos o status quo, como convinha a todo jovem que se prezava naqueles tempos.

Por tudo isso, eu costumava -- e costumo ainda -- ficar muito pê da vida quando alguém de fora se referia à cidade como se fosse uma pessoa e, pior, alguém da cúpula do poder. Um ser que amalgamava em si os três poderes. Alguém que decidia os rumos políticos da nação e que era, necessária e intrinsecamente, corrupto e mau caráter.

Bastava -- e basta ainda -- alguém dizer que "Brasília decidiu isso ou aquilo" ou "os olhos da nação estão voltados pros atos de Brasília" ou "a corrupção Brasiliense" ou "os vampiros de Brasília"... e eu me sinto pessoalmente agredida, ofendida e indignada! Como se pode colocar no mesmo saco aquele punhado de salafrários que são mandados do Brasil inteiro pra cá, via voto ou não, e os milhões de cidadãos honestos e trabalhadores que formam a população real desta cidade e que a fazem funcionar devidamente? Como ofender assim os milhares de jovens nascidos e criados aqui, os legítimos brasilienses, muitos dos quais são vítimas dos salafrários mandados pra cá, e que moram na periferia inchada e no entorno do DF, que se esforçam e estudam e trabalham e são muito mais honestos do que os engravatados do Executivo, do Legislativo e do Judiciário?

Por causa disso, em meados dos anos 90, causei sem querer uma tremenda comoção num show do Caetano Velloso na Sala Villa-lobos do Teatro Nacional.

Antes de começar o espetáculo, ele resolveu fazer um pequeno discurso e já começou dizendo que "Apesar de Brasília fazer isto e aquilo..."

Então, é claro que eu não consegui me conter e disse bem alto que "Brasília não faz política! Os políticos é que fazem e são minoria e nenhum deles nasceu aqui!... Brasília tem gente normal e muita, viu?"

A platéia aplaudiu educadamente o meu aparte. Mas logo se arrependeu. E eu também. Porque o sabidamente verborrágico Caê quis se explicar e se retratar com os brasilienses e, daquele jeito tortuoso e labirintoso bem característico, fez um graaaaande, enooooorme discurso de quase uma hora... e a platéia então queria comer o meu fígado, com toda razão. O que só não aconteceu porque eu me encolhi todinha e quase desapareci na poltrona de veludo verde, pensando seriamente em implantar um zíper nos meus lábios, de modo a evitar futuras situações como aquela.

Mas, com zíper ou sem ele, sou capaz de defender minha cidade por adoção -- e, por extensão, aos nativos dela --, de qualquer modo.

E ainda faço um apelo -- pessoas do resto do país, por favor, votem com muito critério, propósito, cuidado e consciência... e parem de mandar essa corja insuportável pra cá, combinado? Até porque eles não incomodam só a nós, brasilienses. Eles incomodam e ferram com todo o país.

E depois ainda colocam a culpa em Brasília...

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25/11/2009 11h01 - Wilson Pereira

Conterrânea, gostaria de ter sido o primeiro a comentar, acho que foi a defesa mais empolgante que alguém já fez de nossa cidade. Não se esqueça também de atletas "brasilieses", alguns por adoção, como Joaquim Cruz, Carmem Oliveira, Oscar, Nelson Piquet, Lúcio e o próprio Kaká.

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 24/11/2009
Reeditado em 13/12/2010
Código do texto: T1941749
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