Loucos e bêbados brindam ao Deus que está nos céus

De uns tempos para cá, a região onde moro em Porto Alegre tem se tornado cada vez mais generosa em figuras que chamaríamos "gente da rua" - ou seja, mendigos, sem-teto, prostitutas e desocupados em geral. Não que eu morasse em alguma espécie de paraíso onde esse tipo de coisa não existisse, mas é visível a presença crescente de pessoas do tipo numa área da cidade que, apesar dos pesares, costumava ser pouco freqüentada por elas. No fundo, é natural: Porto Alegre cresce em direção ao sul, e a metrópole traz consigo seus filhos e filhas, desgarrados que a seu modo sobrevivem melhor do que a maioria de nós no estômago da grande cidade.

Um dos meus não-tão-novos vizinhos é um morador de rua, que escolheu as quatro ou cinco quadras mais próximas do prédio onde moro como seu pouso habitual. Embora seja um homem saudável, trata-se visivelmente de uma pessoa que não está no pleno uso de suas faculdades mentais - um maluco, para falarmos de modo mais claro. Não é, no entanto, um louco hostil ou antipático - pelo contrário, até tenta de modo jovial se comunicar com as pessoas que passam por ele, embora a aspereza de sua voz, a insistência em ligar as idéias com um "né" quase onipresente e a incoerência de seus assuntos preferenciais geralmente afastem os transeuntes e impeçam uma comunicação mais aprofundada com seus interlocutores. Sua residência mais fixa ficava nas ruínas do que era a casa de uma amiga da minha avó, onde as duas se encontravam para jogar cartas e onde cheguei a entrar uma ou duas vezes, antes que a velha moradora morresse, minha vó se mudasse algumas vezes até morrer também e, bem, enfim. E, como muitos outros loucos e desgraçados desta e de outras cidades mundo afora, por algum motivo o cidadão em questão simpatizou comigo, e sempre que me vê aproveita a deixa para puxar conversa - não muito profunda, muito menos coerente, mas ainda assim uma conversa.

Um dia desses, estava voltando para a casa depois de um dia especialmente desgastante de trabalho. Era um momento que eu sentia bastante ruim, para ser honesto, quando tudo na vida parecia se arrastar num ritmo tedioso rumo a lugar nenhum - bem diferente de hoje, quando a sensação de incerteza se mostra agradável e bem-vinda como talvez nunca antes na minha vida. A verdade é que naquele dia eu andava cabisbaixo, cansado e irritadiço, e ver o vulto do maluco no escuro diante da sua quase-moradia não era exatamente o que eu precisava para me sentir melhor. Baixei a cabeça, e tentei passar reto por ele sem dar tempo para que ele me dirigisse a palavra, como já havia dado certo em várias vezes anteriores; mas quando me aproximei um pouco mais, ele obviamente me viu, e ao invés de falar alguma bobagem sobre o tempo ou seu "trabalho" como "caseiro" do terreno abandonado, ele simplesmente me perguntou: "o senhor estuda, né?". Olhei de relance para seu rosto, e vi que o homem estava bêbado. Talvez tivesse conseguido uma garrafa de cachaça ou vinho barato, e com ela tinha se embriagado de um modo que eu nunca tinha visto antes - de fato, acho que foi a primeira e única vez que vi o homem bêbado até hoje.

Talvez alguns estranhem o fato de eu ter voluntariamente parado no meio de uma rua escura, já tarde da noite, para conversar com um louco bêbado; mas foi o que fiz, acomodando a mochila nos ombros e dizendo que sim, eu tinha sido um estudante até há pouco tempo atrás, mas agora a faculdade tinha acabado e eu estava trabalhando, sem freqüentar aulas nem nada disso. A partir daí a conversa avançou um pouco, mas não muito - ele perguntou onde eu estudava, disse que jornalismo era "uma profissão importante" e mais algumas coisas que não lembro. Quando o silêncio caiu, olhei para o céu estrelado acima de nós, e o homem - com uma perspicácia que talvez não esperemos ver em pessoas que julgamos simplórias ou loucas - disse: "tá bonita a noite, né?". Eu concordei, e ele aproveitou a deixa para entrar no assunto que de fato o interessava, dizendo "hoje é aniversário da minha avó, sabia?".

Explicou-me então que a bebedeira que tinha tomado era em homenagem à sua falecida avó - "eu não sou de bebida, né", lembro dele dizendo, "mas eu tava me sentindo mal, né, e bebi um pouco, uma garrafinha que eu consegui, né?". Soube então que o louco que eu geralmente encarava como um pequeno incômodo eventual havia sido criado pela avó paterna, pessoa que ele considerava sua mãe de fato, e a quem tencionava homenagear naquela data. Aparentemente, a mãe biológica não tinha sido exatamente boa com ele, pois em determinado momento ele quase gritou: "minha mãe era a minha vó, porque minha mãe mesmo era uma vagabunda, né, me odiava e eu odiava ela!". Fiquei ouvindo, e o homem se emocionou mais ainda, dizendo que já tinha tido "coisas de gente importante" e agora não tinha nada e não se importava com isso, mas sentia saudades de sua avó e queria que ela ainda pudesse estar tomando conta dele. "Mas é assim, né? A vida é assim mesmo", disse, e subitamente se voltou em direção às ruínas que eram para ele a coisa mais próxima de um lar, virando as costas para mim e murmurando uns "fique com Deus, né? O senhor fique com Deus" enquanto ia em direção à escuridão onde se sentia seguro e onde ninguém o poderia ver.

Achei, no momento, que a súbita retirada tinha sido um gesto de timidez de um homem que se viu prestes a chorar diante de um quase-desconhecido; fosse como fosse, pensei um bocado no que ele havia me dito, e voltei a pensar bastante nisso nos últimos dias. É que começaram a construir uma nova residência no terreno onde ficava a quase-casa do homem; passo seguidamente lá, e mais de uma vez vi homens trabalhando na limpeza do terreno e na instalação de alicerces para um novo empreendimento qualquer. Foi ontem, passando pelo terreno em questão, que lembrei dessa pequena história, e me dei conta de que já quase nem via mais o protagonista dela. Desde que ficou definitivamente sem lar ou esconderijo, o maluco que às vezes me parava na rua para conversar meio que sumiu; talvez ele tenha aparecido uma ou duas vezes por ali, mas acho que a essa altura deve ter partido, em busca de outro lugar onde se sentisse mais à vontade.

E eu fico pensando em como uma pessoa que quase nem pessoa é mais, alguém pelo qual passamos ao largo e tentamos evitar como um incômodo ou uma doença, mesmo assim tem uma história, uma vida, coisas que nos ligam a ela e que, por repugnância ou desprezo, nos recusamos a enxergar. Penso nas muitas vezes que passei por ele rápido para não dar chance de ele falar, ou das outras tantas em que o ouvi rapidamente a contragosto, e em como nunca imaginei que ele talvez pudesse ter tido uma vida "de verdade", amigos, parentes, amores e uma avó a quem amava do mesmo jeito que eu amo a minha mãe. Alguém tão humano que, diante de uma situação difícil ou de uma lembrança dolorida, simplesmente optou por encher a cara, como tantos de nós mesmos fizemos tantas vezes na vida. Uma pessoa que chamamos de louco, mas que ainda mantém a dignidade de se esconder para chorar no escuro, sozinho, sem esperar que ninguém interceda para ajudá-lo ou consolá-lo. E penso em como os malucos e desgraçados, quando sentem que devem partir, simplesmente o fazem, atendendo às próprias necessidades e urgências, sem dar adeus e sem olhar para trás. Não que de tais idéias e pensamentos eu consiga tirar algum tipo de lição, mas ao menos me fazem ver que a vida sempre ensina, que todos têm as suas dores e não nos cabe dizer qual dor é a que dói mais, e em como a cegueira e a surdez quanto ao próximo são, no fundo, o grande problema do mundo que construímos para nós mesmos.

Aos que sofrem, restam poucos consolos - talvez um deles seja justamente o de achar, na multidão de olhos que não o vêem e de ouvidos que não o ouvem, alguém que retribua suas tentativas de ser visto e ouvido com um pouco que seja de atenção. Quanto a mim, já faz muito tempo que sei que uma das minhas tarefas nesse mundo é ver, ouvir, muitas vezes não entender, quase nunca responder. Esse texto é pouco, tenho certeza; mas me consola a idéia de que, de pouco em pouco, podemos fazer algo que faça diferença para os que nos rodeiam e para nós mesmos. Sei lá, ao menos eu gosto de pensar assim.