A L F O R R I A
Não havia solidão maior do que essa, gerada por um prolongamento sem fim de solidões acumuladas. Pois no momento do ataque inseperado e irreprimível das falanges pessimistas de um fim de semana que terminava revelador de sua vida beirando a um tango , qualquer mecanismo de defesa tornava-se inócuo, tal a arrasadora investida desse poder maior estourando como represa e investindo com águas tormentosas coração abaixo. Tantas fotografias na retina, e, na memória de si um tanto confusa, um universo surreal de cores, ora vivazes, ora funéreas,
tudo sobrevoando este deserto de que era feito aquilo que, neste momento, sentia como seu ser interno . Nem pensara em abrir aí alguma janela, pois não haveria criatura de dentro desse território do seu eu fracionado, capaz de entrever alguma paisagem animadora. Parecia mesmo que seu corpo se tornara envólucro de frágil textura, balão de papel crepon de conteúdo rarefeito, que ao primeiro vento adverso poderia subir ao céu dos esquecidos, na morte de tudo que afinal, não mais valia a pena.
Restavam, entretanto, pontos sensíveis à flor da pele. Sentia o calor, o incômodo da cadeira velha, os pés tocando o chão duro, alertando os seus sentidos de limites bem rígidos.
E era preciso, apesar dos pesares, cuidar da vida e dos assuntos do cotidiano, pois já ouvira pela terceira vez o telefone a tocar, a correspondência restava à espera de ser lida, o prazo de pagar certas contas estava expirando, a dentista havia ligado pra confirmar mais um horário à tarde... Essa vida se fazia presente compulsoriamente correndo paralela à outra, e as duas pareciam divergir em tudo, tanto que aflorando uma, a outra ia sendo sumariamente excluída.
Então suspirou fundo, passou as mãos pela roupa, ergueu-se devagar e foi iniciar sua segunda-feira como um autômato, atendendo ao insistente e irritante telefone, e indo depois continuar a cumprir as tarefas de um cotidiano massificador e interminável, do qual não conseguira ainda ver atendido seu pedido de alforria.