A respeito das noites sem esperança
- Senhor? Boa noite, senhor - era um bêbado, com os olhos apertados, que me vira esperando o ônibus e resolveu que eu poderia ser a solução dos problemas dele. Tirei um dos fones de ouvido, para entender melhor o que ele ia me dizer, embora na verdade eu já soubesse o que era. - O senhor pode ficar tranqüilo, eu não sou bandido, não vou assaltar ninguém... É que, com toda a sinceridade, eu quero tomar uma cachaça, e meu dinheiro acabou. O senhor não tem nada para me ajudar, não?
Respirei fundo. Na verdade, acho que eu tenho uma espécie de imã, um campo magnético que atrai os pobres-diabos das ruas da vida: são muitas as vezes em que sou detido por um pedinte, por um bêbado ou por um maluco, e quase sempre isso resulta em alguma conversa, rápida ou não. Não sei se tenho vocação para ouvir confissões, ou se a minha cara é de alguém tão coração-mole que as ruas já sabem que sou um alvo fácil e mandam seus emissários para testarem minha fé no gênero humano. Seja como for, olhei para o homem: uma pessoa simples, já de certa idade, de camiseta puída e jeans surrados, calçando chinelos de dedo e carregando algumas compras em uma sacola plástica. Não era um mendigo: era um cidadão muito humilde, que deve ter parado no caminho de casa para tomar uns tragos e acabou ficando, retido que foi pelas garras de um antigo vício.
Olhei para ele por algum tempo, depois puxei do bolso duas moedas de baixo valor e entreguei para ele. Como eu já imaginava, ele resolveu puxar conversa, e disse: "Muito obrigado, senhor. Eu logo vi que o senhor ia me ajudar. O senhor tem cara de quem entende os outros". Bom, tudo bem então. E continuou: "Se o senhor quisesse, né?, podia não me dar coisa nenhuma. Podia até me largar lá no hospital, talvez fosse até melhor". E riu, uma risada baixa e sem muito humor.
Deixei o homem falar. Acho que isso é o que eu mais tenho de jornalista, no fim das contas: a curiosidade com relação às outras pessoas, essa coisa de de querer saber e de buscar conhecer as pequenas tragédias e vitórias do dia a dia. Ficou falando o bêbado, e eu ouvindo, no máximo soltando uma frase incentivadora de vez em quando. O homem me disse que era casado, tinha filhos, e que de fato tinha saído para comprar alguns mantimentos para sua casa ("minha mulher vai me matar", falou a certa altura). Como eram cerca de dez e quinze da noite, imagino que ele já estivesse há várias horas se embebedando. Reconhecia a si mesmo como um alcólatra, admitia sem reservas que o que fazia com si mesmo e com os familiares era errado, e dizia que "essa coisa de beber sem parar" o estava matando aos poucos. Mas conseguia achar dignidade no fato de estar pedindo dinheiro ("eu pelo menos não roubo ninguém, não saio com faca ou canivete por aí") e parecia muito chateado com um companheiro de trago, que tinha pego algum dinheiro para comprar cachaça e não voltava. "Eu devia ter desconfiado do guri, deve ter usado o dinheiro para comprar pedra", disse a certa altura, demonstrando ter alguma intimidade com as sutilezas da vida nas ruas de pouco consolo e nenhuma esperança.
Não interferi muito na conversa, preferindo ouvir o homem falar na maior parte do tempo. Apenas uma vez o interrompi, e perguntei - de modo até meio tolo, admito - se o homem não pensava em parar de vez com aquilo, já que a bebida causava arrependimento e fazia tanto mal à sua saúde. Ele disse "eu já tentei, mas me falta força de vontade" e completou: "acho que eu não vou largar dessa vida nunca. O senhor tem todo o direito de pensar mal de mim, porque é verdade mesmo". Eu disse então que não pensava mal dele, e era verdade. Quem sou eu para julgá-lo? Cada um conhece seus próprios demônios, e sabe muito bem o quão assustadores eles parecem. O homem rendeu-se à bebida, talvez para calar a dor, talvez por ser ela mesma seu demônio - e alguns talvez se achem no direito de julgá-lo, mesmo que também carreguem suas chagas, bem escondidas para que ninguém as veja. Da minha parte, me pareceu mais justo apenas calar, enquanto o homem seguia falando da sua vida pouco feliz.
A conversa acabou momentos depois, quando o ônibus surgiu para me carregar de volta ao conforto do lar. Me despedi rapidamente do homem, mas o "vai com Deus" que ele me disse foi tão sincero e num tom de voz tão sentido que, mesmo que eu não seja uma pessoa religiosa, me vi levado a retribuir com as mesmas palavras. A partir daí, cada um seguiu seu caminho, naquela noite quente e sem consolos de Porto Alegre.