Sábado à noite
Ela repuxa o vestido como se este fosse uma manta. Ao fazê-lo resmunga. O pedaço de pano sujo que cobre-lhe o corpo é incapaz de cumprir tão ingrata e improvisada tarefa. A boca que se murcha, não se sabe se em sonho ou pesadelo, gagueja pragas perdidas na noite. Se se encolhe e não lhe basta o vestido para cobrir a dignidade é porque tem frio e se lhe faltam forças para esfregar os braços como dissesse ao frio, estou aqui e basto para mim mesma, é porque é velha e já não lhe valem sequer as idéias da distante juventude. E se ainda assim não lhe bastaram as tragédias de sua própria vida, as ruas, que para ela são o correspondente a um lar, lhe mostraram umas tantas outras.
Da janela de um ônibus qualquer se vê claramente, a velha é uma criatura entre tantas outras mil criaturas; tantas outras mil agonias de um sábado à noite. Dia seguinte: almoços de domingo, filmes no cinema, passeio no parque, volta para casa. Que parte da vida comum, da coisa comum, de um domingo comum lhe foi negada?
Aqueles que são os grandes homens do mundo. Aqueles que são grandes e que ainda assim não enxergam a pequenez dos que já são pequenos, se pudessem vir e olhar o sofrimento dos que do dia só comem a poeira do mundo, saberiam como ele é maior que o ego.
Enquanto as dores do mundo rasgam os que estão com o rosto colado às janelas do ônibus qualquer, a velha se revira no mundo (acordando?), as entranhas se mexendo em espasmo. Olha para alguém (do ônibus?). Parece que olha, mas não olha, o juízo lhe eclipsou os olhos. O ônibus corre macio, entrando mais e mais dentro da garganta da noite. Uma voz diz, ide e anunciai, outra responde, o que olhos não vêem (ou fingem não ver) o coração não sente. O ônibus se afasta mais. A velha vai sumindo quadro a quadro, cinematográfica. Volta a dormir.