Meu irmão

Acordo com a voz alta da minha mulher, que é muito comedida.

Num tom nítido de desespero, ela fala alto. “João Carlos faleceu, está caído no chão, João morreu, Joãozinho está morto.”

Agoniada, fica repetindo estas frases e andando de um lado para o outro.

Completamente sem ação, sou acordado e dou conta da realidade. A notícia é certa, foi um dos protetores dele, meu cunhado Leo, que deu a notícia. Há poucas horas antes, Leo havia comprado uma pizza de cebola para o meu irmão. Fatiou, deixou numa mesa e avisou ao João.

No dia seguinte, com a pizza em cima da sua cama e caído ao chão, o seu protetor o encontra no solo, morto!

Morava sozinho, por ferrenha vontade própria. A casa era sua, não a abandonava, como ao seu cão e suas músicas. Todas clássicas, na sua maioria óperas que conhecia autor, obra, história e intérpretes famosos.

Certa ocasião, perguntei a ele se conhecia a história de Carmen, de Bizet. Quase que irritado, a resposta veio num relâmpago: “Claro que conheço, senão eu ia ouvir para quê?” Tem tempo, isso. Nunca mais duvidei da sua cultura musical. Com apenas quatorze anos de idade, citava trechos e mais trechos de Don Quixote. Como ria! Emprestou seus dois volumes a minha mulher. Terminada a leitura, ela simplesmente comentou “Joãozinho é um gênio.” E não gosta de falar no assunto.

João Carlos não tinha, por uma deficiência que no fim da vida superou de forma inexplicável, o segundo grau completo. Parto difícil, foi tirado com dificuldade, que abalou seus primeiros anos. Morte súbita, edema agudo do pulmão, que faz muito sofrer, mas em seguida de um infarto agudo do miocárdio. Fulmina.

Acabamos perdendo mãe e pai. No desastre que levou nossa mãe, ele estava junto, e nada sofreu fisicamente. Superou, não se sabe como, a falta da mãe. É bom que se diga que João foi fortemente amparado pelo nosso pai.

Seria o suficiente?

Há alguns anos não enxergava. Nunca falou neste assunto, e ninguém sabe como, fazia os pagamentos em ordem e sem erros, com visão mínima.

Desde cedo adotou minha mulher como irmã de alma, e no fim da sua vida isto só fez aumentar. O entendimento e o carinho eram mútuos.

Posso continuar e escrever páginas e páginas.

Jamais vou conseguir que alguém o conheça, se não esteve com ele pelo menos um dia. Outros, não vão entender nunca, mesmo os que com João Carlos conviveram.

Fomos feridos, todos nós que o amamos, pela forma abrupta como desapareceu do nosso meio. Em momentos iguais a esse, vemos a fragilidade a que estamos expostos, sem nada que nos proteja. A cada esquina, um perigo. A cada perigo, um nada. Um miserável e cruel vazio, um nada que machuca, enquanto vamos tocando a doce ilusão de viver.

Jorge Cortás Sader Filho
Enviado por Jorge Cortás Sader Filho em 22/11/2009
Reeditado em 22/11/2009
Código do texto: T1937769
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