COMÉDIA NO AVIÃO

Aquele jovem alto, branco, cabelos alourados, de aparência estrangeira e sotaque da América do Norte estava literalmente morrendo de sono quando sentou na poltrona da janela bem em frente da nossa no Airbus 320 que nos levaria do Rio de Janeiro para Natal. Referido sujeito já estava acomodado em seu lugar ao embarcamos, e ouvi quando ele gritou altissonante para alguém, em inglês: "I,m gonna sleep now!"("agora vou dormir"). E não estava brincando de jeito nenhum pois imediatamente inclinou a cabeça sobre a janelinha ao lado de sua poltrona e fechou os olhos logo deixando-se abraçar por Morfeu, entregando-se a profundo sono. Em poucos segundos desandou a roncar como um porco sendo capado, de tal sorte parecia o quilate de seu sono, sendo escutado por toda a extensão da aeronave apesar das turbinas. Dos três assentos um era ocupado pelo cara sonolento roncador, o do meio por um senhor de cabelos brancos tossindo a todo instante e o do corredor por uma jovem senhora que espirrava quase sem parar. Dá para imaginar esse estranho trio formado ali naquele avião hermeticamente fechado e cheio de gente respirando o mesmo ar de lata de sardinha? Esta para começar o espetáculo.

A mulher espirrava e assoava o nariz, o senhor amadurecido tossia e bufava, e o cara embriagado de sono roncava desesperado assobiando feito passarinho ferido. Eu e minha esposa ríamos sem nos conter daquela situação esdrúxula e tragicômica, as pessoas sentadas nas imediações também se voltavam surpreendidas ante aquela apresentação do inesperado show proporcionado pelos três personagens inusitados, e todos sorriam discretamente por presenciarem as cenas engraçadas e bufantes do trio excêntrico. No exato momento em que o avião deu a volta na pista para tomar distância, acelerar os potentes motores, fazer carreira e decolar duas coisas realmente cômicas, de fazer gargalhar até mesmo um frade de pedra, aconteceram. A parte frontal da aeronave embicou no rumo do céu e o trem de pouso retornou ao seu lugar fazendo aquele barulho característico de ferragens sendo acomodadas em local pequeno, insuficiente e nada espaçoso, então nesse instante a mulher sacudiu-se num espirro estrondoso e assoou o nariz, o homem de meia idade tossiu um tanto apoplético e o sonolento, por sua vez, para gáudio da galera adepta do hilário, deixou escapar, relaxado que estava enquanto dormia, uma baita flatulência em alto e bom som. Isto é, soltou um sonoro p.....!

Como não podia deixar de ser, a risada foi geral ainda que alguns tentassem disfarçar porque encabulados. No entanto, já agora a atenção dos circunstantes das proximidades se voltava inteiramente para o palco da comédia bizonha, todos naturalmente esperando outros atos similares na sequencia do teatro ali improvisado. Os outros dois personagens dessa peça não ensaiada se entreolharam constrangidos, ela espirrou e ele tossiu pondo a mão no nariz, começaram a conversar em voz baixa e fizeram de conta que estava tudo bem. Mas o que veio a seguir somente foi visto por mim e minha esposa. Ao atravessar uma súbita área de instabilidade o avião balançou levemente e o jovem americano sonolento, sereno nos confortáveis braços de Morfeu, caiu por cima do homem ao seu lado esquerdo e usaria o ombro do companheiro de viagem como travesseiro se este, aturdido com a surpresa absurda, não o tivesse empurrado com brusquidão, passando a tossir esgoelado em seguida como se tivesse sido tomado por um acesso sem fim. O espirro da mulher acompanhou a sinfonia de tosse ininterrupta regida pelo ronco do jovem, que tombou para o encosto da cadeira à sua frente e lá continuou a dormir com o rosto amparado pelas costas do assento, a boca meio aberta babando. Eu e minha esposa nos esbaldávamos de tanto rir, pois tudo aquilo era engraçado demais.

Diminuída a explosão de tosse, o jovem esborrachado no encosto da poltrona e a mulher ainda assoando o nariz, momentaneamente a paz voltou a reinar enquanto a viagem prosseguia a novecentos quilômetros por hora e a mais ou menos treze mil pés de altura. Mas durou muito pouco essa serenidade. De repente o jovem sentou-se ereto, abriu os olhos desnorteado, fez um gesto inaudito com as mãos e, mexendo com a boca cheia de asquerosa baba, tornou a debruçar a cabeça sobre o sujeito do lado, que novamente, aborrecido pela impertinência e o inusitado do fato, deu-lhe bruto safanão jogando-o contra a janelinha. O jovem quase acordou, balbuciou algo desprovido de sentido e se jogou de novo sobre o encosto da poltrona à sua frente. Não demorou muito, contudo. Pouco depois, enquanto seu companheiro de viagem tossia e a mulher voltava a espirrar como se estivesse possessa, lá ele voltou a sentar-se com as costas retas e, devagarinho, sorrateiro mesmo como se quisesse amaciar, azeitar para invadir, foi se encostando com suavidade no braço do outro, sempre roncando, durante algum tempo assim permanecendo até que, matreiro, embora dormindo. o dorminhoco deslizou um pouco para baixo, esticou as pernas para a direita e, como quem não quer nada, foi inclinando levemente a cabeça até pousá-la em definitivo no ombro amigo. O incrível dessa estória é que ao acontecer essa nova invasão de privacidade não houve mais protesto do incomodado a partir desse instante,e ele agora tossia sôfrego mas sem alarde, acompanhado pelos espirros constantes da mulher ao lado. Assim, durante toda a viagem, eu e Ana rindo sem parar, os três finalmente ficaram tranquilos, ela espirrando e assoando o nariz, ele, o homem maduro, tossindo sempre mas com cuidado para não desalojar o jovem, e este, satisfeito sobre aquele ombro macio, roncando como criança no colo da mãe. Não houve mais flatulência depois disso, somente a confusa melodia de espirros, tosse e roncos.

Gilbamar de Oliveira Bezerra
Enviado por Gilbamar de Oliveira Bezerra em 21/11/2009
Reeditado em 21/11/2009
Código do texto: T1936186
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