O SOL DAQUELA NOITE !                          
 
  Todos guardam algum segredo, sagrados doces mistérios, variam as circunstâncias, o momento e os critérios. Quantas vezes você olha para uma pessoa e tem aquela curiosidade imensa em saber o que vai pelos seus pensamentos, que problemas as afligem, que sonhos flutuam por sua alma.

Não há nenhum mal nisto,( as pessoas também gostariam de saber o que vai pela sua cabeça), por isso não se acanhe, venha comigo, entremos nesta lanchonete, repare (sem dar bandeira), no homem sentado ao fundo na ala esquerda. Não, esse não ! Na outra mesa, aquele de cabelos grisalhos, camiseta azul, calça jeans e tênis, junto com o garoto de blusa vermelha. Como você pode observar ele não é nem magro nem gordo, nem alto nem baixo, tem uma aparência jovial e se eu não lhe contasse que o garoto é seu neto, você, com certeza, julgaria que era seu filho ou quem sabe um sobrinho.

O homem em questão é o senhor Cândido Augusto da Paz, você notou, (pode olhar novamente), que nos seus olhos existe um brilho um tanto quanto enigmático, e o seu sorriso parece um sol pendurado no rosto? Pois é, para tudo existe um motivo, uma razão, e para o senhor Da Paz (como é conhecido na empresa onde trabalha), cinqüenta anos, grisalho, (como você já confirmou), honesto, totalmente dedicado ao trabalho e à família, bom marido, avô daqueles que mimam os netos, levam aos passeios no parque, ao cinema, para comer hambúrguer com fritas e coca cola, e tomar sorvete quase todos os finais de semana, as coisas não são diferentes, afinal, olhando bem de pertinho quase ninguém é normal.

Mas, quem nunca teve na vida, uma paixão incontida dessas que a gente enlouquece ? A paixão do senhor Da Paz pelo futebol, aliás, pela seleção brasileira, é uma coisa assim fora do normal. Ele não é desses fanáticos comuns, afinal ele nem sequer tem um time do coração, mas o seu fascínio pela equipe verde-amarela, nem Freud explica! Sabe tudo, tudo mesmo, sobre a paixão da sua vida, mas mesmo assim, não discute futebol, política, religião e nem marca de cerveja!

É um cara carismático e sempre tem de plantão alguma palavra de incentivo, de elogio, de conforto, e como ninguém é perfeito, quando é preciso pegar pesado, sai da frente, também é com ele mesmo!  No fundo, no fundo, o senhor Da Paz faz jus ao nome, é cândido, pacífico, cauteloso, nunca deu tiro no escuro, e nunca foi de deixar furo! Agora vou lhe pedir um favor, sei que você simpatizou de cara com o senhor Da Paz, por isso, não o julgue pelos fatos que passo a relatar, afinal, ninguém tem procuração divina para julgar comportamentos.

Peço que volte comigo há alguns poucos anos atrás, é final de expediente de mais um dia de trabalho, todos estão no auditório da empresa comemorando o aniversário (vinte e três anos), da gata-de-olhos-de-mel, que trabalha no departamento de marketing. É hora do parabéns pra você, (pode cantar junto), a aniversariante apaga as velas no bolo e, neste mesmo instante, (olha lá!), acende um estopim no coração do senhor Da Paz!
 
Você concorda comigo que o olhar explosivo que ela dirigiu ao senhor Da Paz, é um verdadeiro torpedo de meiguice e promessas de um estágio no paraíso ? Tá certo, eu concordo com você que ela não é linda, maravilhosa, não é assim uma Brastemp, mas aqueles lábios carnudos, e aqueles olhos perigosos, sobretudo para quem não pode se fartar com doces, lhe emprestam um ar assim meio exótico, e não dá pra negar que ela é realmente uma verdadeira gatinha.

Ao abraçar a aniversariante dando-lhe os parabéns, o senhor Da Paz (perceba),  fica fora de órbita sem saber se é efeito do perfume delicioso que ela usa, ou pelo impacto causado por aquele olhar. O senhor Da Paz é um cara sério, mas não é mané  pra não notar a intenção por trás daqueles olhos meigos! Como eu já disse, ele nunca foi dado a aventuras amorosas, sua única paixão extra-conjugal é o seu eterno caso de amor com a seleção verde-amarela !
 
Nos dias que se seguem, as pessoas começam a notar que o senhor Da Paz, vira e mexe, tem alguma coisa para fazer no terceiro andar, onde, (com certeza, você também já percebeu), fica o departamento de marketing, e conseqüentemente a gata-de-olhos-de-mel! O próprio Da Paz, (já estamos mais íntimos e podemos dispensar a formalidade),  se dá conta do que ocorre, e como é sempre muito ponderado, conversa consigo mesmo:
                
                  - Pára com isso Da Paz, tá ficando bobo depois de velho? Papai Noel não existe, o que uma gatinha daquelas vai querer com um cara que tem idade de ser pai dela ?
                 -  Depois você nunca foi disso, acorda, cai na real, bota a cabeça no lugar!

No entanto, Da Paz fala consigo mesmo, mas não lhe dá ouvidos, e aumenta cada vez mais, a vontade de botar a cabeça (a outra) no lugar ! Ele sabe muito bem que os tempos agora são outros, que tudo é diferente, mas ele é da antiga, não tem absolutamente nada a ver com a forma descartável e sem compromisso com que a juventude atual se relaciona amorosamente. E lhe vem à mente, aquela frase que ele ouviu uma repositora de produtos em um supermercado, dizer ao seu companheiro de trabalho, alguns anos mais novo do que ela:
           
              - Acorda menino, quem gosta de homem é veado, mulher gosta é de dinheiro !

E Da Paz diz novamente para si mesmo:
              
               - Acorda Da Paz, você não tem condições psicológicas e nem financeiras pra encarar uma barra dessa, é muita areia pro seu caminhão!

E isso era a pura verdade, ele tinha um bom cargo, ganhava relativamente bem, mas não era um alto salário que permitisse extravagâncias, tinha o seu apartamentinho na praia, seu carro era popular e já tinha alguns anos, e ele se virava nos trinta para dar conta do recado, para equilibrar o orçamento. Mas, sonhar não paga imposto, e ele se permite a fazê-lo, e também, viver fantasias  não é nenhum pecado!
 
Um dia ele cria coragem e convida a gata-de-olhos-de-mel para almoçar, sei que você não vai se surpreender sabendo que ela aceitou, numa boa! Conversam banalidades, trocam idéias sobre a nova campanha publicitária da empresa, e depois da sobremesa os olhos de Da Paz não conseguem fugir do visgo da meiguice daqueles olhos de mel,(nem lembra da insulina).Quase que automaticamente, sem perceber, Da Paz segura as mãos da gata, e nota que ela estremece e arrepia da cabeça aos pés, abre o seu sorriso de anjo (se é que anjos sorriem), e continua a olhar fixamente para ele, com aquele olhar mágico que não preciso mais descrever.

Nos dias que se seguem, (aliás foram uns três meses) os almoços passam a ser rotina, e as conversas ficam cada vez mais íntimas, em pouco tempo ele sabe tudo a respeito dela. Foi criada pela mãe, tem três irmãos, e mais uma irmã por parte de pai, mora no arrabalde da periferia. Seu primeiro amor, o único homem da sua vida (segundo ela), está do outro lado do mundo, na terra do sol nascente. Faz quase um ano que ele  partiu, e eles haviam brigado um pouco antes da viagem, coisa assim meio besta, sem explicação, e como nenhum dos dois quis dar o braço a torcer, o assunto ficou pendente.

Mas ela ainda o ama, e não transou com ninguém (jura que é verdade), depois da sua partida, tem esperança de que quando ele voltar, eles se acertam de novo. No trabalho ela é assediada constantemente pelos gaviões de plantão da empresa, (aqueles que olham para as mulheres como se estivessem olhando para um pedaço de carne pendurada no açougue), mas ela sabe jogar muito bem o jogo da sedução, e descartar os inconvenientes quando necessário. Em pouco tempo Da Paz fica sabendo tudo sobre a gata, inclusive, das ansiedades, e das dúvidas que pairam pela sua cabeça . Mas, como eu já disse, Da Paz é da antiga, tipo o último romântico, e, aos trancos e barrancos vai mantendo os pés no chão, muito embora seus sonhos andassem passeando pelas nuvens de algodão de mãos dadas com um anjo.

Às vezes um samurai aparecia assim de repente, o sabre brilhando em sua mão, o olhar de aço penetrante, assustador, Da Paz voltava à realidade!  Até com um certo prazer, e eu acho que para tirar mais ainda o sossego do Da Paz, ou para ver se ele se decide, a gata lhe conta tudo sobre as investidas e cantadas dos gaviões, os convites, as promessas, tudo! Da Paz se remói de ciúmes, de inveja ou de um sentimento que ele não sabe explicar, ou finge não perceber, mas continua na dele. 
           
Um dia a gata lhe confessa que está pensando em quebrar o compromisso feito com ela mesma, de esperar pela volta do samurai. Confessa que está balançando, que ninguém é de ferro , e que talvez não valha a pena ficar se guardando para um homem que nem sabe quando volta, se é que volta! Ela havia saído para jantar com um rapaz que trabalhava no escritório em frente, conta que ele é gerente de informática, tem vinte e sete anos, é muito simpático, e ela está seriamente pensando em colocar um fim na sua abstinência sexual. Da Paz pensou lá com os seus botões que vinte e sete,mais vinte e três dava quase a sua idade, e se sentiu fora da parada, no fundo achava que era bem melhor para a gata se envolver com alguém jovem como ela.

Escondendo seus sentimentos, pergunta em que lugar eles haviam ido jantar, e a gata lhe diz que foram a um restaurante dançante onde a atração musical é o tango, então Da Paz fica sabendo que o rapaz é argentino. Aquela noite, (nem precisava dizer) Da Paz não teve um pingo da dita cuja! Os pesadelos o assombravam, e agora a ameaça não vinha do samurai dos olhos frios de aço empunhando o seu sabre, era muito pior, ela vinha vestindo o uniforme azul e branco da seleção argentina. Ninguém merece! As nuvens brancas do seu constante pesadelo haviam se transformado em um gramado verdinho.
 
Era o momento decisivo, ele ajeita a bola na marca de pênalti, sente que as suas pernas pesam toneladas, é o peso da responsabilidade, o goleiro vai se transformando em uma gigantesca muralha azul e branca, num flash ele vê os olhos da gata-troféu, que sorri tranqüilamente alheia ao seu sofrimento. Acorda num sobressalto! Torna a dormir, ou melhor, a sofrer!

Agora ele é o goleiro, seu algoz enverga uma camisa azul e branca e caminha resoluto em direção a bola, defender aquele pênalti é botar as mãos na taça, ou melhor, na gata. Ele pensa na importância das traves, bem que elas podiam ser mais largas, já ajudava um pouco, reza para pular no canto certo, fazer a defesa espetacular e se consagrar, sabe que apenas um dos protagonistas vai entrar para a história, e mentaliza a defesa miraculosa! Lembra-se do Dieguito Faroleiro, contando vantagens, com aquela peculiar arrogância dizendo que se não fosse pelo vício, ele seria o Rei! 
                Da Paz é campeão, também tem treze letras, é um bom sinal! 
             
O juiz autoriza a cobrança, Da Paz acorda, ufa!!!

Se lembra do arrepio da gata quando ele havia segurado a sua mão pela primeira vez., Da Paz enlouquece, pira na batatinha, viaja no extrato de tomate sentado na janelinha, o seu ufanismo verde-amarelo vem à tona, a gata é nada mais nada menos, que um troféu em que ninguém coloca as mãos há um ano. A velha rixa aflora, é um jogo que ele não pode perder, e além do mais ele não precisa só assistir, torcer e sofrer, ele pode decidir o jogo, vencer a partida. E ele decide ir para o ataque.
            - Perder pro samurái ainda passa, mas perder pra argentino, nem à pau!

Monta seu esquema estratégico e no dia seguinte, finalmente, sai para jantar com a gata-de-olhos-de-mel, e é claro, ela vai ser a sobremesa. Foi a melhor partida da sua carreira, fez gol de placa, gol de mão, gol de cabeça, entrou com bola e tudo, (verdade que a defesa não oferecia muita resistência, aliás, muito pelo contrário), e ele conquistou o troféu tão ardentemente desejado. No intervalo, olha para a gata deitada ao seu lado, meiga, doce, exausta, encantadora, esbanjando sua juventude, e ele se belisca para ver se acorda.
 
Mas felizmente não é um sonho, é a mais pura e fantástica realidade, Da Paz é claro, não é mais nenhum jovenzinho, mas tem a vantagem da experiência! A gata-de-olhos-de-mel está feliz, seu olhar radiante parece um imenso sol banhando tudo com seus raios dourados. Da Paz vai às nuvens, e seu sorriso reflete o brilho daquele sol.
                
 Depois daquela noite, o sol nunca mais saiu do seu rosto ! 
                                    
antonio carlos de paula
poeta e compositor
AC de Paula
Enviado por AC de Paula em 21/11/2009
Reeditado em 22/08/2019
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