Imperdoável discriminação

          Disse isso dezenas de vezes.
          Mas vou repetir: já tive, na minha varanda, uns dez passarinhos morando em confortáveis gaiolas. E garanto: não estou mentindo. O que aqui redigo é uma verdade nua e cristalina.
          Quem me conhece, sabe do meu passado de passarinheiro assumido.
          Só pintassilgos, trazidos de Minas Gerais, eu tive cinco. "Eles são os melhores", me dizia Joaquim Santana, dono da Casa dos Pássaros, na feira das Sete Portas. 
          E ele tinha absoluta razão: meus pintassilgos, vindos das alterosas, sem exceção, cantavam o dia todo. E às vezes. depois do sol se pôr!
          Ouvindo-os, comparava-os com os canários de raça que aparecem numa crônica de Humberto de Campo.
          O autor de
Pombos de Maomé, A bacia de Pilatos, Contrastes, Sombras que sofrem e outras preciosidades, chamou esses canários de famosos cantores, acrescentando, que "eles retiniam árias ligeiras como pequenos maestros voláteis".
          Nesse tempo, eu morava numa casa enfeitada por um frondoso flamboyant, acácias amarelas, e por duas viçosas e insinuantes buganvílias.
          Tinha, por conseguinte, tudo para fazer da minha varanda um enorme viveiro, e fiz.
           De uma hora para outra passei a ser cumprimentado como o maior passarinheiro da minha rua. E me orgulhava disso. Viver entre passarins, era o que eu mais queria. E entre eles vivi durante anos.
          Um dia, troquei minha casa por um apartamento. E tive que me despedir dos meus passarinhos. Notara, em boa hora, que   a maioria dos meus futuros vizinhos gostava mesmo era de cachorros.
          Mas ainda tenho saudades, volvidos quase vinte anos da nossa separação, dos meus passarinhos. Conforta-me a certeza de tê-los deixado em mãos carinhosas.
          Vez em quando, me lembro da minha graúna. Dia desses, sonhei vendo-a e ouvindo seu penetrante e cadenciado gorjeio; mais parecendo uma maestrina de asas negras. 
          E o meu curió?
          E o meu galo-de-campina?
          Semana passada, depois de muitos anos, voltei à feira da Sete Portas, uma feira do povão de Salvador. Nessa feira a gente compra carnes, cereais, frutas, verdura,  tudo a preços módicos.
E também passarins. 
          Na Sete Portas, como disse acima, ficava a Casa dos Pássaros, do seu Joaquim, um sergipano radicado na Bahia, desde meados do século passado. 
          Digo ficava porque, com sua morte, ocorrida recentemente, a casa mudou de nome.
           Hoje, além de passarim, o novo dono vende pato, galinha, capote, aqui na Bahia mais conhecido como galinha d´angola.
          Andei pra lá e pra cá, até descobrir, numa gaiola de palitos, muito maltratada, um lindo sabiá.
          Meu primeiro impulso , claro, foi o de adquiri-lo a qualquer preço. Tratava-se de um sabiá legítimo, e, por isso, um pássaro muito caro. 
          Antes de conhecer seu preço, consultei o meu saldo bancário e os meus cartões de crédito.
          Vi que dava para levar o sabiá, que me pareceu, no primeiro momento, esquecido pelo seu dono. 
          Quis vê-lo de perto. "Não se compra passarim sem examiná-lo de perto, e por alguns minutos", ensinara-me, certa ocasião, o finado Joaquim Santana. 
          Não é que descobrir que o sabiá, tão arisco e tão cantante, tinha um defeito insanável em uma de suas pernas?  Em outras palavras, mais duras, mas inarredáveis, ele era um passarim aleijado. 
          E agora? Comprar um pássaro capenga, pagando por ele uma nota? Me perguntei,   olhando-o, confesso, com uma compaixão sem-fim... 
          De súbito, lembrei-me da crônica
O canário coxo que, li, faz alguns anos, em Pombos de Maomé, livro de Humberto de Campos, da Série Conselheiro X.X. 
          Madame Viterbo Ramos, conta Humberto, encantou-se com um canário, que cantava alegremente.  Chamou o Teotônio, dono da ave, e lhe perguntou quanto pagaria para levar o canarinho esperto; e, a queima roupa, soube do preço.
          Aproximou-se do bichinho, e constatou que ele era coxo. Sem hesitar, recusou-se a comprá-lo.
          Aborrecido, o Teotônio a interpelou, nos seguintes termos: "A senhora quer comprar um canário para cantar ou para dançar?"
          Oh! imperdoável discriminação sofreu o canarinho coxo! Deficiente físico, sim, mas dando o melhor de si, ou seja, o seu impecável trinado.
           Que mais, além do seu canto se pode pedir a um passarim? 
            E o Sabiá capenga? 
            Quando quis fechar a compra, fui informado de que ele, algumas horas antes, tinha sido vendido. Dormira no ponto.
            Deixei a Sete Portas frustrado.
    
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 20/11/2009
Reeditado em 20/11/2009
Código do texto: T1934657