EU PRECISAVA CHORAR
Acabo de assistir à uma cena da novela "VIVER A VIDA", em que a personagem Luciana, agora tetraplégica, atinge o auge do desespero e dá vazão à emoção que lhe escorre por todos os poros, por toda a sua alma, numa impotência que grita, rasga dimensões, extrapolando os limites do insuportável. Conheço essa limitação, embora em menores proporções, quando, também abruptamente, o destino achou por bem aparar-me as asas, tolher-me o caminhar faceiro pelas alamandas encantadas dos caminhos daquele tempo.
Quanta magia, quanta alegria, quanta vida estampada em passos ligeiros, jocosos, manhosos, dançarinos, enfeitados pela leveza e sensualidade de um corpinho lindo e um rostinho de um ser ainda tão menina.
O futuro bailhava-me na mente e o mundo era de muitas cores, com as quais eu desenhava um porvir risonho e doce.
Bela vida, vida bela!
Mas são sábios os designos da existência, e como a Luciana, o meu teto caiu muitas vezes, em convulsões e perguntas sem respostas, no silêncio ensurdecedor de mim mesma.
E uma voz inaudível gritava sem tréguas dos compartimentos da alma:
_ vá à luta! Sê forte!
Vc é soldado e não pode fraquejar!
A causa é únicamente sua, e outras batalhas ainda virão!
Hoje, muitos anos se passaram, e meus passos ainda não deixam as suas pegadas no chão, mas eu me sinto inteira, viva e contente!
Muito aprendizado nesse novo modelo de viver.
Arrisco-me a dizer, sem medo de errar, que sou muito, muito feliz assim.
Aprendi tantas coisas, as quais formam a minha bagagem, sem calos nos pés, que agora tentam ser mais velozes no deslanchar de quatro rodas para andar.
Voltando ao meu passado, àqueles caminhos de tantos predegulhos, registro aqui uma vazão daquele tempo, descrita no livro PÁSSARO SEM ASAS, de minha lavra, quando a tirania do destino, sem dó nem piedade, num preparo prematuro, talvez tentando reforçar a minha couraça para resistir os tornados que viriam, arrancou-me o ser que eu tanto amava - A MINHA MÃE! Às vezes penso que foi melhor assim. A vida não erra! Não gostaria de vê-la sofrer por mim! Tantos cerceamentos, tantas amarras gritantes, tanta paciência a exercitar, mas muitos aprendizados!
De repente, uma criança outra vez! :
Agora eu estava ali, lado a lado, nas mesmas condições daquelas pessoas, agravadas pelo pavor e a inexperiência da primeira vez. Era como se estivesse em camisa-de-força, presa por algo que não havia cometido.
O coração contorcia-se. As mãos fremiam enquanto um entalo tomava-me a garganta, enrubescendo-me o rosto e turvando-me as retinas. Não mais enxergava. O líquido escaldante escorria-me pelas faces. O coração latejava como se fosse explodir e o grito prisioneiro se agasalhava medroso em mim. Uma convulsão arrebatava-me, sacudindo-me todo o corpo. Estava chorando.
Ganhei a traseira de um caminhão parado nas imediações. Ali, estava a salvo. Poderia transbordar todo o Oceano Atlântico em lágrimas. Era desconhecida, estava só, abandonada por causa da tirania do destino, precisando partilhar comigo mesma tanta desventura.
Minhas forças estavam minadas e, mais do que nunca, queria ter mãe, deitar-me em seu regaço e deixar-me embalar. Até Deus banira-me desse direito, levando-a, prematuramente, numa noite fria. Será que ela estava vendo o meu sofrimento, o que restara de mim?
Ainda está gravada em minhas retinas a última presença física do seu rosto amigo, com as mãos inertes cruzadas ao peito no leito frio. Mãos que semearam, trabalharam, abençoaram, afagaram tanto! A lembrança do seu cortejo fúnebre...
O dia acabava! O sol esvaía-se na linha do horizonte, num matizado nesgado de cores pálidas, cujos raios filtravam-se, através do arvoredo, em sombras rendadas, visíveis à margem da estrada.
O esquife com os restos mortais de minha mãe era transportado ladeira acima, acompanhado pela fileira de carros que ziguezagueava pelas curvas, deixando para trás o casario, a vida agitada pelo convívio humano.
Ficava para trás um lar vazio e uma saudade eterna. Embora a brisa daquele resto de tarde fosse amena, o filme impregnado de tristeza nunca desertou de mim. Era a despedida de uma guerreira! A última homenagem que a vida lhe fazia. Uma mulher simples que, além dos muitos valores, havia-me deixado sua coragem por legado.
Mesmo do outro lado da vida, o seu espírito, certamente, estaria ali a me acalentar. Inexperiente, eu precisava chorar. Estava indefesa. A paraplegia era recente e eu não sabia como proceder diante de tanta impotência.
Um garoto, com desajeitada caixa de engraxate às costas, violara o meu esconderijo. Encontrara-me. Assustado, cheio de compaixão, tentou consolar-me:
— Não chore, não! A senhora quer água?
— Não — respondi.
— A senhora poderia ir à igreja dos crentes. Lá eles curam as pessoas. A senhora vai andar. Eu garanto!
Não podia, também, causar-lhe pena. Mesmo entre lágrimas, agradeci sorrindo. Era a solidariedade de uma criança desconhecida, porém, meiga e carinhosa. Talvez um anjo da guarda para enxugar-me o pranto