Noturnário Insone - parte 1 (considerações sobre uma partida de futebol)
Hoje vi um daqueles raros momentos simbólicos de superação que somente o esporte pode proporcionar. Assistindo o jogo do fluminense na TV – momento inusitado na minha atribulada vida – constatei como é em momentos prosaicos que se inspiram aventuras epopéicas, romances arrebatadores e dramas profundos.
Um jogador é atingido durante o jogo por uma cotovelada desleal, ignorada pelo juiz, é claro. Um corte perigoso no supercílio; sangue brotando e escorrendo pelo rosto, manchando a face esquerda; o jogo continua; o técnico e um reserva tentam estancar o sangue, mas é difícil; o médico estava do outro lado do campo, prestando atendimento a outro jogador.
O fluminense está perdendo e com um a menos em campo.
O jogador machucado volta ao campo, praticamente mumificado, com um “curativo” gigantesco sobre os olhos, envolvendo a cabeça, batendo as palmas das mãos como quem diz “vambora, o jogo continua”
E continuou mesmo.
Incessantes tentativas frustradas de gol do fluminense. O outro time chutava pouco, mas ganhava por 1X0, graças àqueles acontecimentos seqüenciais sem sentido que denominamos azar.
A trave, o goleiro, os zagueiros adversários, todos fazendo seu serviço com a habilidade que não possuíam, enquanto os outros jogadores geriam uma carnificina em campo.
Os atletas tricolores, como todo bom herói, mantinham a ética desportiva, tão descartável atualmente.
A peleja foi dura, de um lado os Açougueiros latinos, do outro os bem-aventurados tricolores, desejando um oportuno gol.
Claro que a esse ponto só faltavam 3 minutos para o final do jogo.
E de uma confusão na área adversária surge um gol. A rede balança, o árbitro apita, o narrador grita – ininterruptamente por quase 40 segundos, o que é muito impressionante.
O autor, é claro, é o jogador machucado. A cabeça enfaixada rebola sobre o pescoço enquanto ele corre pelo campo no habitual momento de comemoração.
Eis um herói.
Ressurgido das cinzas, como a fênix. Ele perdeu tudo e conseguiu dar a volta por cima justamente.
Ele é Rocky Balboa, espancado, atirado à lona, ele reergue-se. É um monstro! E vence, com justiça.
Ele é a imagem utópica. É o que todos nós desejamos ser.
E por um instante, eu me pego envolvido pela mágica do esporte.
Pela multidão bradando em uníssono um nome. Uma referência. Uma salvação.
O estádio é um exílio, lá fora, a violência destrói vidas, lares, cidades. Lá dentro, um santuário esquecido e isolado, vive a esperança. A esperança de três cores.
Vejo-me vivendo em uma comunidade pacífica, onde não há vestígio de violência. Vive-se de amor, luz, energia e todos os outros alimentos que não contaminem o solo, o ar, a água e o corpo.
Mas aí eu acordo.
Isso tudo não existe, não há lugar onde estejamos livres do mundo.
Nosso herói agora está entre braços e pernas.
Estão se espancando no maracanã. O mundo chegou ao meu paraíso sereno.
Como não podia deixar de ser, estou frustrado de novo.
É a efemeridade do show business