O mar sempre estava pra essa peixinha aqui...

Tenho lido tantos ótimos textos no Recanto falando sobre praia e mar, que agora, com o calor infernal que está fazendo aqui, eu até me desconcentrei do trabalho, trocando os textos do ofício pelas imagens e sensações das praias da minha infância...

Como era gostoso alternar as brincadeiras entre, sobre e através das ondas com as construções na areia, as conchinhas colhidas e logo devolvidas, a observação dos tatuís miudinhos entrando e saindo das toquinhas, a sensação gostosa do sol na pele, os cristaizinhos de sal rebrilhando nos pelinhos louros dos braços e pernas bronzeados, o vento revirando os cabelos, as mechas castanhas pouco a pouco clareando aqui e ali, e o cheiro limpo de maresia entrando sem cerimônia pelas narinas alegremente dilatadas, tudo em mim se vestindo de verão.

Volto aos textos, mas de repente passa na minha frente o vendedor de mate gelado, seguido de perto pelo dos Biscoitos Globo -- o "mentirinha" mais gostoso do planeta! -- e o barulho das ondas misturado aos gritos das crianças me transporta pra outros sabores e odores -- os espetinhos de camarão frito, os salsichões assados na brasa, a água de coco com canudinho...

E que sensação quando os salva-vidas saradões e muito calmos iam nadando, furando as ondas com garbo e eficiência, pra resgatar algum gringo de pele malhada -- muito branca e muito vermelha -- que inadvertidamente se aventurava além do quebra-mar, onde a correnteza era muito mais forte e o refluxo da água dificultava o retorno à terra firme. Ou melhor, à branca e brilhante areia fofa do Recreio dos Bandeirantes, onde o bravo salvador dos semi-afogados depositava cuidadosamente o gringo exaurido, tanto pela luta com o mar, quanto com o próprio garotão que havia lhe salvado. E que, pra inveja suspirante das mocinhas e moçonas, e pra admiração dos meninos, rapazes e senhores, fazia a respiração boca-a-boca e remexia os braços do gringo estupefato, que terminava dando uma golfada súbita de água salgada e cujo peito arfava loucamente, voltando à vida, sob os aplausos e assovios entusiasmados da galera pro impassível e gostosão salva-vidas herói do dia.

O meu grande barato era furar as ondas maiores, saltar por sobre as menores e, depois, chegando ao quebra-mar, voltar à areia tirando jacaré -- brincadeira que consiste em se usar o próprio corpo como se fosse uma prancha e vir deslizando sob a crista da onda.

Havia um grande banco de areia que avançava praia adentro até o quebra-mar. E em dias de pós-ressaca, formavam-se grandes buracos aqui e ali neste banco de areia, nos quais a água redemoinhava louca e ferozmente. Um dia, distraída com a brincadeira, não percebi o perigo e acabei caindo num deles. Batia meus pezinhos no fundo pra dar o necessário impulso pra subida, mas as ondas seguintes, alimentando o rodamoinho, me empurravam de novo pra baixo.

Com o fôlego já no final, começou a bater um desespero louco! Foi então que pressenti mais do que vi lá em cima, na superfície, a sombra de um corpo tirando jacaré. Não tive dúvida -- dei o derradeiro e maior impulso com os pés e estiquei o máximo possível o meu bracinho magro e pequeno pra alcançar e segurar qualquer parte daquele corpo deslizante e salvador. Minha mão, em seguida, fechou-se cega e firmemente em torno de algo macio sob um tecido sintético. Ufa! Foi a minha salvação.

A cena toda durou apenas uns parcos segundos, que pra mim duraram uma eternidade. Mas tão logo pude me firmar, aos trambolhões, sobre o banco de areia, olhei em torno e quase morri de vergonha! Por pouco não voltei a mergulhar naquele buraco pra sumir rapidinho. Pois o que vi foi um rapazote dos seus dezesseis ou dezessete anos, tão constrangido quanto eu, que procurava se afastar depressa dali, meio agachado e obviamente dolorido, segurando por sobre a sunga uma certa parte macia e muito sensível da sua anatomia e que, por acaso, tinha sido o instrumento da minha salvação.

Voltei o mais depressa que pude pra areia seca e fofa, me encolhi sob o guarda-sol e fiquei lá por um booom tempo, sentindo a maior vergonha do mundo!

Muitos anos depois, numa outra praia bastante semelhante àquela, depois de muita hesitação e cautela, descobri que o meu corpo possuía uma memória fantástica e, sem precisar fazer esforço algum, furei muitas ondas, saltei por sobre outras tantas e tirei todos os jacarés a que tinha direito. Mas tomei um imenso cuidado pra não repetir o mico daquela vez. Até porque, então, eu já estava beeem grandinha.

E agora, só por ter escrito esta crônica, me deu uma vontade louca de me esbaldar numa boa praia com muitas, sucessivas, espumantes e deliciosas ondas...

Mas tenho que voltar ao trabalho. Onda agora, só as cerebrais.

Maria Iaci
Enviado por Maria Iaci em 18/11/2009
Reeditado em 19/11/2009
Código do texto: T1930246
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