AS PONTAS DO MANTO ROTO
Crônica
AS PONTAS DO MANTO ROTO
Ler é abrir portas para os sonhos, algumas vezes, outras vezes para a realidade, mas sempre uma conquista para o espírito.
Esturato
10 de novembro de 2009
 
AS PONTAS DO MANTO ROTO
Em plena tarde de um dia quente e pachorrento, lá estava ele! Numa hora em que nada deveria alterar minha indolência, nada que espicaçasse minha alma, eu incomodei-me com ele. Pessoas atravessavam a avenida e não vi seus rostos, mas o dele bateu em minhas vísceras. O trânsito, assim como eu, literalmente parou! Os carros, dos dois lados da avenida, não impediram o seu caminho. Ele seguia em frente, sempre em frente. O infinito era a meta.
Parei para olhá-lo e violentar-me um pouco mais. As roupas em meu corpo senti-as como se não tivesse o direito a vesti-las. Meus sapatos novos, um privilégio tê-los?! Algum dia na vida ele aniversariou com bolo e balas de coco? As minhas endureceram na compoteira, meu apartamento é grande demais, e o vinho tinto avinagrou...
Sem prestar atenção à tarde que transcorria quente, os transeuntes compartilharam com ele alguns segundos. Eu partilhei seus segundos, descalcei meus pés e pisei com ele o asfalto quente, senti nos meus pés seus sapatos desbeiçados, exibindo dedos encardidos pela sola solta do tênis.
E ele veio se aproximando... Sem pressa alguma! Seu olhar, fixado em algum ponto à sua frente, parecia ignorar os movimentos e os ruídos à sua volta – como uma formiga carregando uma folha maior que o próprio corpo, seguindo a trilha até o formigueiro em missão atávica.
O relógio digital, afixado na ilha da avenida, marcava 15h52 e 37ºC de temperatura. Eu ansiava agora por um banho frio, um sabonete perfumado, uma toalha seca, um copo de água gelada, um...
Do outro lado da calçada, o semáforo para pedestre projetou o sinal verde. Não atravessei. Continuei parada, vivenciando o momento e esperando para sofrer um pouco mais.
Eu estava parada em frente ao jardim do prédio à minha direita e me veio lembranças. Outrora, mulheres com seus lindos e rosados bebês em carrinhos acolchoados de madras e cassa sentavam-se tranquilamente na mureta do prédio. Hoje grades o isolam da violência urbana. Nesse mesmo jardim, e neste exato momento, um cidadão sentado na mesma mureta descasca uma manga de modo quase obsceno. Com os cotovelos apoiados nas pernas abertas, desnuda lentamente a fruta. O suco liberado escorre pelos dedos grossos, mãos e braços. Calmamente, ele abocanha a polpa e atira as cascas no chão. Absorvido como estava na manga, não viu e não partilhou comigo a aproximação do mendigo e o meu desconforto.
Mas ele, o mendigo, aproximou-se da calçada onde eu embaralhava pensamentos como quem embaralha cartas – eu o repeli quando passou por mim! Senti meus braços se estendendo e jogando-o no chão. Ninguém causa danos ao outro e sai impune! Com que direito ele adentra meu momento e me causa desequilíbrio, numa tarde tão quente e embaçada de primavera? Eu deveria sentir pena? Deveria, mas não senti!
Quando passou por mim, notei seus cabelos encaracolados escapando de um gorro ensebado. Olhos grandes e castanhos moviam-se sem fixar-se em ponto algum. Incomodaram-me. Presente sem futuro e a morte o norte. Talvez. Carregava nos ombros um manto roto de cobertor cinza barato atado por tiras ao peito magro. As pontas do manto batiam em suas pernas. A calça “jeans” puída deixava à mostra joelhos encardidos. O calor era intenso, mas ele parecia não sentir. O manto cobria seus sentimentos, mas expunha minha impertinência. As mãos, envoltas em farrapos do que um dia fora uma luva, deixavam à mostra dedos com cotos de unhas enegrecidas de sujeira. Apoiava-se a um cajado com certa dignidade. Cajado e manto quesitos naturais de sua performance no palco da vida, e o gorro ensebado a coroa.
– Bonito rapaz, não?! Parece um príncipe. – Comentei com um desconhecido ao meu lado que, também como eu, parecia embaralhar pensamentos. Acredito que um bom prato de sopa gorda e uma toalha felpuda após um banho morno com sabonete perfumado deveriam fazer a diferença!
– É... Um rapaz tão novinho e já um mendigo! Ainda por cima orgulhoso, nariz empinado... Veja só que figura! Não deve ter mais de dezesseis anos, você não acha?
– É..., realmente. Não mais que isso!
– Parece ter assumido um compromisso com alguma confraria e se prepara para vir a ser um grão-mestre. Ou, quem sabe, o príncipe dos mendigos, ou ainda um... Sei lá!
Sem mais comentários, aguardei o sinal abrir para pedestres. A situação era bastante ambígua. Cultuamos valores e os temos como assertivas, esquecendo-nos de respeitar o livre arbítrio de cada um.
O sinal verde do semáforo indicou que eu podia passar tranquila. Os meus temores e desconfortos já não faziam sentido. O mendigo os levara consigo nas pontas do manto roto. Nada mais se interporia entre mim e o meu caminho. Nada que, naquele momento, me levasse a questionar debaixo de 37ºC e às 15h58’ da tarde.
O sinal abriu novamente. Atravessei a rua com pés calçados na minha realidade carecida de soluções imediatas, e segui em frente.
Esturato/09