UM DADO, UM MENINO E O PERDÃO

Bato a porta.

A penumbra do quarto do meu filho reflete bem meu estado de espírito: árido e escuro. Há um silêncio mórbido. As paredes impõem os limites do meu universo. Estou só. Meus pensamentos restringem-se à caixa preta de minha própria ‘aeronave’, onde divido o comando comigo mesmo.

Ligo a tv. O som alto faz estremecer as janelas e as notícias do mundo incomodam meus ouvidos: ‘carro-bomba explode no Líbano, trinta e seis pessoas morrem’. Abaixo o som. As notícias continuam: ‘sem-terras invadem propriedade improdutiva. O tumulto acaba em tragédia. Duas pessoas morrem’. A voz do ‘âncora’ do telejornal é agora minha companheira de quarto. Mais duas notícias. Desligo a tv. De novo o silêncio. O computador está ligado. Na tela de LCD alguém chama no MSN: ‘oiêêeeee! Vc ta aí?’ Não respondo. Olho fixamente para a tela na esperança de não mais ver o recado. Ele insiste: ‘Oooiiiii, tem alguém aí?’ Novamente o silêncio. Pego o controle. Ligo a tv. O telejornal continua. Mudo de canal. Abaixo ao máximo o volume. A luz das imagens faz colorir o quarto. Ligo o aparelho de som. A música tênue dá ao ambiente um pouco de paz. As imagens da tv agridem meus olhos: ‘polícia e traficantes trocam tiros na favela. Bala perdida atinge criança de oito anos’. A notícia é muda, mas as imagens falam por si. O desespero se reflete nos olhos dos entrevistados, embalado pelo ‘Jazz’ que escorre do cd. Desligo a tv. Dos olhos, duas lágrimas ganham o infinito espaço até alcançarem o chão.

Ouço passos. Desligo o som e apuro os ouvidos. Aproximam-se. Enxugo meus olhos e caminho em direção à porta, que se abre abruptamente. Uma voz gritante rompe o silêncio: ‘vôôo! Ô vôo’!

A mochila vai ao chão, enquanto a criança corre em minha direção e alça vôo em meu colo. O abraço é apertado e o beijo molhado. Numa das mãos, um pequeno dado colorido deixa transparecer uma frase escrita em seu vértice: ‘amar a todos’. Os joelhos vão ao chão. O abraço continua. Agora mais frouxo, embora não com menor avidez. A pequena mão desliza sobre a barba branca. A criança se vira e aconchega a cabeça em meu colo, assentando-se sobre meu joelho. Beijo-lhe os cabelos. As pequeninas mãos se juntam sobre o dado. Um só balanço e o brinquedo toma altura e desce. A criança pula do meu colo, apanha o dado e exclama: ‘amar por primeiro, vô! Agora é a sua vez’!

Tomei o dado nas mãos. Meus olhos se ergueram e a branca pintura do teto me fez lembrar uma tela de cinema. Numa fração de segundos as notícias do mundo tomaram vida. Olhei o dado e joguei-o longe. A criança tomou o corredor de acesso aos quartos e aproximando-se do brinquedo gritou: ‘amar os inimigos, vô’. Nossos olhos se encontraram. O silêncio se fez palavras.

As pernas trêmulas se levantaram. O corpo parecia pesar toneladas. Com passos lentos desci as escadas que davam para a cozinha. O garoto segurava minha mão, molhada pelo suor frio que escorria. Meu coração carregava o peso do remorso. À minha frente, ‘meu inimigo’ aguardava meu pedido de perdão. A criança não se deu por vencida. Soltou o dado no chão, e segurando-lhe a mão exclamou: ‘vó, o vô quer falar com você’!

Com um último esforço, a criança uniu nossas mãos, e apanhando o dado gritou: ‘vôôo, vóóo, amor recíproco! Vamos jogar de novo’?!

Texto inspirado na ‘Arte de Amar’, de Chiara Lubich, onde o ‘Dado do Amor’ é seu instrumento de socialização. O Dado traz impresso em seus vértices os principais aspectos desta maravilhosa Arte.

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