Estigmas de uma vida
Itamaury Teles
Ao longo da vida, vamos adquirindo marcas não só na alma – causadas pelos reveses inerentes à convivência humana -, mas também pelo corpo afora.
Os estigmas na alma são temas da predileção dos psiquiatras, psicólogos e psicanalistas. Por isso, não me atrevo a entrar nessa seara alheia, para não falar mais bobagens do que já tenho costume...
Contentar-me-ei, aqui e agora, em tratar das marcas físicas deixados pelo meu viver de mais de meio século neste robusto corpo, que já foi esquálido um dia – pelo menos quando fazia Tiro de Guerra.
Em minha infância atribulada, nadando no Rio Mosquito, soltando papagaio pelas praças porteirinhenses, dando tropicões mil em jogos de futebol e até colocando gravata em urubu, é natural que eu tenha adquirido muitas marcas físicas, que permanecem em quelóides que o tempo não apaga.
No lado direito da testa remanesce talvez a mais antiga das minhas cicatrizes. Eu devia ter cinco anos, mais ou menos, quando meti a testa na quina do portal da nossa antiga casa em Porteirinha. Briguei com um meu vizinho, bati e corri em retirada. Na curva, para entrar na minha casa, escorreguei na areia que havia no passeio e a testa foi de encontro ao portal. Sangueiro danado, choro idem, e acabei levando dois pontos metálicos na ferida. Amintas Pinheiro, então balconista na farmácia de “seu” Anfrísio, foi quem me socorreu.
Também tenho uma clavícula quebrada, que me deixou com o ombro direito caído por muito tempo. Acertou-o uma moda que veio a seguir, nos albores dos meus vinte anos, das bolsas a tiracolo. Como a usava sobre o ombro direito, tinha que mantê-lo mais levantado que o esquerdo, para que a alça da bolsa não escorregasse... Em vez de ficar com o ombro direito mais alto - como os demais da minha geração -, essa moda acabou por consertar o meu defeito físico causado pelas lutas na infância, já que eu era o “galo de briga” do meu irmão Itajahy. Era o campeão disparado nessa “arte”, até encontrar o Paulinho Orelha Branca, que me deu um balão e eu caí de mau jeito. Fiquei uns dois meses com o tronco enfaixado...
Na batata da perna esquerda – ou panturrilha, como gostam de falar os locutores esportivos -, tenho uma cicatriz redonda. Meu pai comprou um carro novo, um Ford F-350, e lá fomos nós – meus irmãos e eu – inaugurar a boléia. Depois de muito brincar, pulando no estofado macio, cansamos e, na saída, meu irmão fechou a porta, “mordendo” parte da minha perna. Fiquei preso ali por alguns minutos, gritando a plenos pulmões, até que meu pai veio e me socorreu, abrindo a porta do carro.
No dedo polegar direito, tenho uma pequena contusão – que me retirou parte do tato -, causada por uma lasca de ardósia, quando do incêndio em loja de material de construção, então situada ao lado da Agência Centro do Banco do Brasil, em Montes Claros, no início da década de 90. Estava dormindo, quando fui acordado pelo vigia do Banco, informando-me do incêndio. Como gerente da agência, imediatamente fui para lá, pois as labaredas ameaçavam passar para o prédio do Banco. Do último andar, portando mangueira contra incêndio, fiquei resfriando a parede do prédio. O calor era tanto que começou a estourar a ardósia do parapeito da janela. E foi aí que me feri, com uma farpa de ardósia, que penetrou por baixo da minha unha. A dor foi lancinante e nem consegui dormir mais. No dia seguinte, tive que me submeter à pequena cirurgia para a retirada do corpo estranho...
Apesar de o Euclides da Cunha, em seu livro “Os Sertões”, afirmar ser o sertanejo antes de tudo um forte, não se pode olvidar da assertiva do Guimarães Rosa, posta na boca do jagunço Riobaldo Tatarana (em Grande Sertão: Veredas) para quem “viver é muito perigoso”.
E assim vamos vivendo, no fio da navalha, tentando levantar sempre mais fortes dos tropicões físicos e dos da alma, embora remanesçam os estigmas da vida. Até quando?