O caranguejo

Meu primeiro contato com a maldade humana foi aos cinco anos, ainda que esta tenha sido sentida em seu estágio mais primário, momento em que chamam esse ensaio da pobreza moral simplesmente por traquinagem. O evento, mesmo na tenra idade em que me encontrava, foi, na minha vida adulta, a pedra de toque para minhas relações tão arredias com os outros homens.

Costumava passar os fins-de-semana na casa de minha avó. A casa era em um desses bairros, que antes de serem destruídos pela especulação imobiliária, agregavam uma classe média refinada – a fina flor de minha cidade. Lá se podia brincar livremente com os outros meninos, oportunidade que eu não desfrutava em minha casa, que ficava em um bairro mais afastado e intranqüilo. Naquele ambiente de condomínio fechado estávamos entregues ao tempo e a nós mesmos, então gastávamos a nossa tarde em atividades cuja finalidade não era específica, fosse priorizando a brincadeira, inserindo nas conversas os palavrões que não se falava em casa ou então refestelando-nos na vadiagem incriticável das tardes mornas.

Foi em um desses dias de minha desaparecida infância que, a fim de explorar as redondezas, desgarrei-me do grupo e me declarei rei de um pequeno quinhão. Investido de repentina autoridade, corri por entre as árvores; espantei borboletas; lutei espadas com o vento e rolei na grama em um riso alto e bobo de criança. Uma vez satisfeito de meus desejos individualistas, começava a retornar ao grupinho quando vi, deslocado do cenário e enfiado em um tronco, um bicho que até então não havia visto em minha curta vida. Horas mais tarde, com a cabeça no colo de minha mãe, saberia, de fato, que era um caranguejo. Ainda hoje os acho curiosos, osso por fora, a carne por dentro. A arquitetura ousada, hábil na lama, um despropósito no jardim em que estávamos naquele dia. Uma dessas belezas rústicas em que Deus, numa sutileza, faz questão de não fazer arte-final. Impressionante como podia surgir vida pulsante no lodo e não estava lá na bíblia que Ele, se quisesse, poderia fazer surgir das pedras filhos de Abraão? Como poderia ter parado ali? A maré era longe, provavelmente, assim como eu, desgarrara-se de sua cambada, dando prejuízo à outra criatura que do lodo também tirava seu sustento. Fiquei olhando, olhando, o corpo não emanava vida, senão dos estranhos olhos que se moviam curiosos (me olhando?) para todos os lados. Aproximei-me temeroso, não sabia se ele corria, voava – em minha cabeça ele podia fazer qualquer coisa. Em resposta o bicho levantou em ameaça a garra, a maior, a que devia usar para se defender de momentos como o que estávamos vivendo. Estanquei, mas não era medo, era uma admiração, achei-o lindo dentro dos limites de sua identidade. Deus é muito grande para existir por si só. Ele tem que se dividir para estar em todos os lugares, exposto e escondido nos pequenos fenômenos em que faz o homem, criatura em meio a outras criaturas, descobrir a si mesmo no silêncio da contemplação solitária. Queria mostrar ao demais, não ter só para mim os frutos de uma natureza tão generosa. Fui chamar os outros meninos. Não sabia do que chamar o meu achado, podia chamá-lo do que quisesse, a mim havia sido segredada a sua existência.

Quando chegamos, ele estava no mesmo lugar, inamovível. Os garotos olharam. Um deles riu e disse decepcionado: “Mas é só um caranguejo”. Achei o nome feio, eu poderia ter dado um melhor. De repente, sem que pudesse entender algo, vi uma pedra voando e a garra do caranguejo, a maior, desprender-se, caindo sem vida no chão. Voaram outras, na verdade uma chuva delas e de um momento a outro não havia mais caranguejo, só uma massa de carne indefinida. Os meninos riam, gritavam. A maldade neles surge assim, uma reação em cadeia impensada, onde o evento que sucede o outro não é resposta, mas estímulo de seu antecessor. Alegremente foram saindo, eu destruído por dentro, sem ter podido protestar ou entender os motivos do que fizeram – uma maldade! Anos mais tarde – quando os meninos já eram homens – eles não se lembrariam do ocorrido, mesmo que eu lhes tentasse reavivar a memória acerca do pequeno crime. Horrorizado, permaneci quieto, sem entender meu erro. Os meninos foram brincar – ainda havia muito para brincar.

Voltei à casa de minha avó chorando. Minha mãe, ao ver meu sofrimento, me afagou e contei-lhe o ocorrido. Consolado por minha genitora, adormeci e ainda triste sonhei sonhos sem caranguejos. Não voltei ao bairro durante muito tempo. Naquele dia aprendi duas coisas: que existem segredos que nasceram para ser segredos e que a dor – esta linguagem universal, capaz de unir homens e bichos – não se expressa aos gritos, como defendem os vegetarianos para justificar seu apetite por folhas, mas na linguagem do olhar, capaz de perceber aquilo que sofre. Os anos se passaram e eu cresci.

Thomaz Ribeiro
Enviado por Thomaz Ribeiro em 15/11/2009
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