O cara que senta logo ali

Trabalhar sempre me trouxe novas experiências. Aquelas 6 horas diárias não eram gastas apenas servindo os outros. Eu os conhecia. Ás vezes, até mais do que eles mesmos. Isso é o estranho. Eu não falava mais do que o necessário, não fazia perguntas e evitava sentimentalismo e amizades com eles. Foi como se eles tivessem me ensinado o quanto o ser humano consegue ser podre.

Eu os conhecia apenas de observar. Alguns eu via todos os dias, com sua mesma rotina, o mesmo estresse ao telefone, a mesma cara de entediados e fazendo a mesma triste pergunta de sempre: "Qual o prato do dia?". Eu me sentia meio sortuda quando ouvia essa pergunta. Sabe, pelo fato de eu poder almoçar em casa, com a minha família. O que fazia com que eu me sentisse sortuda por ter uma família. Talvez eles nem fossem bem vindos em sua própria casa. Talvez fossem obrigados a comer a comida do único lugar em que todos são obrigados a suportar sua presença. No final das contas, essas eram as personalidades tristes do Giorno. Mas ainda haviam muitos outros tipo de pessoas. Cada uma com um jeito diferente, com aparentes problemas diferentes, e também aquelas que mereciam com toda a certeza todo o irritante sarcasmo que vinha da minha boca.

Fala sério, elas achavam mesmo que eram melhores do que eu? Melhores do que qualquer um? Achavam que seus problemas eram maiores e ao mesmo tempo se vangloriavam por suas vidas serem melhores. Riam alto para mostrarem que tinham boas piadas, convidavam um montão de fulanos só para dizerem que era pop, e no final das contas deixava 50 centavos de gorjeta e saíam reclamando da comida. Mas eu observei. Eles sempre voltavam.

Havia um cara desse tipo. Era com certeza um individuo estranho. De vez em vez aparecia com um montão de amigos, rindo e soltando coisas do tipo: "Cerveja por minha conta hoje, galera!". Parecia o cara mais feliz do mundo. Outras vezes, aparecia sozinho, sentando numa mesa isolada apenas com um notebook de companhia. Passava as mãos nos cabelos e parecia sempre preocupado. Quando algum de nós ía atende-lo, nos tratava mal e com desdém. Ele com certeza era um sujeito bem bipolar. Eu notei isso no dia seguinte à vez em que fui obrigada a encarar o mal humor do indivíduo.

Nesse dia, fui atende-lo já disposta a abrir a boca para soltar qualquer coisa caso ele voltasse com seu comportamento tão grosseiro, mas nada aconteceu. Aliás, algo aconteceu. Ele estava sorrindo. Me cumprimentou com um animado "Boa tarde", elogiou a vista e até chegou a dizer que tenho olhos bonitos. Eu sei que deveria sorrir e agradecê-lo como se estivesse muito lisonjeada, mas veja bem, eu não sou assim. Não sou a garotinha simpática que recebe elogios a toda hora. A minha reação natural foi, obviamente, adotar uma expressão desconfiada. Eu até que soltei um obrigado, mas não foi o ‘obrigado’ mais simpático da minha vida. Talvez não tenha chegado nem perto. Mas acho que ele não reparou, apenas voltou a olhar para a vista que pareceu tanto o fascinar naquele dia.

Ele passou a ir mais vezes no restaurante, sentando sempre na mesma mesa, olhando sempre a mesma vista e parecendo estar sempre esperando alguém. Talvez fosse apenas impressão minha, eu estava observando demais esse cara. E além do mais, se estava esperando alguém, esse alguém estava constantemente lhe dando um belo de um cano.

Um dia desses, cheguei a sentir pena dele. Olhava pra chuva e parecia tão triste. Um pouco atormentado também, mas a tristeza era muito mais visível. Algo de muito ruim parecia ter acontecido em sua vida, mas parecia conformado. Eu sei que não sou a pessoa mais sentimentalista do mundo e que evito qualquer contato com esses clientes, mas mesmo com todas as células do meu corpo gritando "Não faça isso!!" eu tive vontade de ir até ele e conversar. Sei lá, de repente conversar sobre pássaros, música ou em como a comida do Giorno’s não é lá essas coisas.

Certo dia não agüentei. Fui até ele com a caderneta na mão para anotar o pedido, ele fez o sinal de sempre, estilo: "Não quero nada". Eu me virei pra voltar ao meu trabalho e pra me lembrar de que os problemas de um estranho, a vida de um estranho e nem mesmo as esquisitices desse estranho me interessam. Mas não foi bem assim. Me virei para ele novamente e, finalmente soltei:

- Cara, você vem todos os dias, senta na mesma mesa, faz o mesmo sinal com as mãos e ás vezes o mesmo comentário sobre pássaros e fica olhando pra essa vista que nem é grande coisa. Afinal de contas, você espera ou não alguém? - Perguntei. Mike, o puxa-saco, digo, funcionário do mês passou a observar a cena meio espantado, mas eu não dei muita importância. Mike e eu nunca nos demos bem, e acho que ele estava feliz com a possibilidade de eu ser demitida por tratar mal os clientes (o que não era tão estranho assim).

- Obrigado. - Disse ele depois de uma longa pausa. Parecia estranhamente aliviado.

- Pelo o quê? - Perguntei perplexa.

- Sabe, eu venho aqui todos os dias esperando que qualquer um se revolte com a minha presença e me enfrente de um jeito inesperado. E isso nunca aconteceu, até que uma garçonete, que está longe de ser a funcionária exemplar, me enfrenta, mesmo correndo todos os riscos de ser mandada embora. E tudo isso, tudo isso por uma simples curiosidade. - Ele sorriu levemente.

- E daí? - Perguntei sem dar importância.

- Garota, você não sabe como a mente humana é inacreditável. Se precisar, me procure. - Dizendo isso, ele se levantou e saiu com um sorriso no rosto, deixando uma gorjeta de 50 dólares pra mim, junto do dinheiro estava um cartão que dizia:

"Stefan Knowles - Psicanalista de adolescentes"

Enquanto eu olhava pro cartão tentando entender tudo o que havia acontecido, Mike aproximou-se como um gato aproxima-se da presa, com um leve sorriso maléfico:

- É, no final das contas, ele te achou uma intrometida louca e descontrolada.

- Pois é. - Respondi depois de largar o cartão na mesa e, pegando as 50 pratas de cima da mesa, disse - Uma intrometida louca e descontrolada...Com 50 pratas de graça. -Disse eu sorrindo sarcasticamente - E eu nem precisei fazer esforço. - Dizendo isso, coloquei o dinheiro no bolso e saí, deixando Mike parado com cara de tacho e se perguntando por que a vida é tão injusta.

Afinal, gente louca acontece.