RECEITAS DE VÓ FELA

Ela era costureira de mão cheia, fazia roupas pra homem e pra mulher, possuindo um talento nato para o corte e a costura. Quando meninos nos vestiu a todos, os dez filhos do “Seu” Constantino, com aquelas calças de brim (azulão ou cáqui), aquelas camisas de fustão (será que ainda hoje existe o fustão?), de cambraia, e os vestidinhos de chita estampada pras mocinhas. Dona Maria Felix (Vó Fela) era “cobra criada”...

Trabalhava tão bem nas confecções que era disputada pelas vizinhas de nossa mãe Flaviana, quando vinha do Cedro pra passar alguns dias conosco, na capital. Não foi à toa que, com suas costuras, criou todos os filhos, do Fulô (o mais velho) ao caçula Olavo, viúva que ficou, nova ainda, pois o marido (Vô Antonio Felix) morreu afogado, tentando atravessar a nado o rio Paraopeba, num sítio próximo ao Cedro, durante um convescote realizado num domingo ensolarado. Contavam os mais velhos que ele, nadador intrépido, se dispôs a atravessar o rio pra buscar uma canoa, do outro lado, a fim de conduzir o grupo de familiares e amigos na travessia, buscando o lugar onde acampariam pra fazer o tal piquenique. Arrancou a camisa, descalçou as botinas e se jogou de calças no rio largo e caudaloso. A turma, na margem, assoviava e gritava, estimulando meu avô. No meio do rio ele parou, agitou os braços, rodopiou e afundou de vez. Seu corpo foi encontrado dias depois. Uma cãibra violenta atacou-lhe as pernas e tirou-lhe os movimentos da cintura pra baixo, decretando a sua agonia. Morreu sob os olhares desesperados da família e dos amigos, os quais nada puderam fazer! ...

Mas a minha Vó Fela, como ia dizendo, emérita costureira, era mestra também como raizeira afamada. No interior e em Belo Horizonte tinha freguesia cativa. Era só aportar na Renascença e vinha gente de todo canto à procura das suas garrafadas. “- Isso é bom pra curar hemorróidas, aquilo é pra bronquite alérgica, aquela outra cura prisão de ventre ...”, e assim por diante. Era tiro e queda. Eu soube mais tarde, quando rapaz, que ela fazia garrafadas que curavam até doença venérea. Lembrei-me então de alguns tipos que vinham procurá-la, meio ressabiados, constrangidos. Eram atendidos no alpendre da casa, pagavam a garrafada e sumiam. Algum tempo depois retornavam com um presentinho, agradecendo muito e dizendo-se curados.

Quando menino, eu costumava acompanhá-la pelos matos que circundavam a fábrica de tecidos da Renascença, atravessando para os pastos da Fazenda do “Seu” Juca (onde hoje se erguem os prédios da Cidade Nova), à cata de plantas e raízes para os seus remédios. Ela ia me ensinando:-

“- Beto, isto é unha de tatu ... aqui é um cipó cabeludo, aquele ali é o “cai-na-lama”, muito bom pra cólica, dor de barriga, essa aqui é a carqueja, excelente pros males do estômago, e etc., etc.”

Eu seguia atento, registrando tudo. Até hoje, quando vou ao Mercado Central, tenho o hábito de comprar tais ervas medicinais com aquelas raízeiras de lá. Um cházinho em casa é de lei, vem a calhar. O que Vó Fela dizia, ou fazia, eu assinava em baixo. Só discordei dela uma vez em que me mostrou um monte de cocô de cachorro numa moita. A bosta, em pelotas, já estava branca como algodão e de seca até estorricava no capim verde. Ela a catou, embrulhou numa folha de jornal e, séria, me falou, pro meu espanto juvenil:-

“- Vou levar. Se for de cachorro doido, o chá disso cura até asma! ...”

-o-o-o-o-o-

B.Hte., 11/12/08

RobertoRego
Enviado por RobertoRego em 14/11/2009
Reeditado em 14/11/2009
Código do texto: T1922523
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