Consoais e Vogantes
Consoais e Vogantes
Vou te escrevendo pois já percebi que todo mundo te escreve. Ora, saiba, já que todo mundo assim procede, não vejo motivo para me esquivar. Até porque, cada um é um ponto de vista. Várias pessoas, o que equivale a vários pontos de vista, entrevistaram Ferréz, escritor, 33 anos, morador do Capão Redondo. Ferréz avisa que a periferia paulistana é um barril pronto para explodir. Motivos? A criminalização dos periféricos. Ferréz fala com propriedade e quem assina embaixo é a revista Caros Amigos, em edição recente, numa reportagem esbanjadora de conteúdo, dessas que não encontram um vôo de tal alcance em mega veículos.
Como sempre, a verdade está oculta e para descobri-la não basta passear pelo jardim. Há que se levantar as pedras ali expostas e cavar um pouco mais. Ora, saiba, não existem flores debaixo da terra. Caros Amigos também aponta sua luneta para além da fronteira paulistana e revela que por baixo das terras cariocas existem 10.000 cadáveres, sistematicamente abatidos ao longo dos últimos 10 anos, tendo os abatedores a cumplicidade velada de órgãos de comunicação e outros.
Agora você já percebeu que não estou exatamente lhe trazendo boas notícias através desta carta. É o que acontece com as notícias. Séculos atrás os franceses passaram a dizer: “pas de nouvelle, bonne nouvelle”. Ao que os ingleses traduziram por: “no news, good news”. Ao que poderíamos extratificar: sem notícias, boas notícias. Ocorre que Caros Amigos noticiou.
Não se trata apenas de uma informação alarmante. Trata-se de estabelecer que nossa candura, nossa ingenuidade, nossa pseudo infância no rol das civilizações vem ganhando máculas cujo preço sairá do varejo e será pago no atacado.
Absolutamente tudo na orbe se movimenta por curvatura.
Absolutamente todo buscador sofre. Uns menos, outros mais. Escritores e leitores são buscadores.
Ora, eu lhe pergunto, no que consiste essa busca?
Às vezes alguma coisa acontece, ou não acontece nada. Talvez falte alguma coisa mas, no momento, parece impossível identificar o que seja. Às vezes não é bem assim, pois palavras ainda são muito precárias para identificar as nuances. A questão é: você começou a procurar e ainda não percebeu. Quando faltam as palavras, ou as palavras que você conhece já não fazem (o mesmo) sentido, chegou o momento de fazer a ponte entre você e tudo o que te cerca.
Nossos irmãos criminalizados, fartos até as têmporas pelo derramamento de sangue de inocentes, conseguem inventar uma própria cultura em meio a cultura sem trégua de fogo cruzado que os permeia. Promovem por conta própria saraus, oficinas de música, de teatro, de letras...
Estão buscando.
Cada vez que uma vida brasileira é tirada por outro brasileiro, em nome da lei ou porque a lei foi burlada, por um caubói solitário ou por um grupo organizado, friamente ou por impulso, num rompante de fúria ou como resposta a essa, que espécie de carma e de surreal tolerância recaem sobre cada um de nós?
A dança do “quem será o próximo?” acontece em cada trecho do dia, um dia como outro qualquer, uma quarta-feira, por exemplo, e o que mais se compartilha – e com tanta intensidade – possui quatro letras, duas vogais e duas consoantes, e já está tão calcado entre os habitantes que se tornou o responsável número um pela maior parte de seus hábitos, sobretudo os inadmissíveis. Chama-se medo.
Me atrevo a supor em você a mesma impressão que eu tenho. Posso também estar enganado, mas isso não muda uma vírgula as linhas gerais com que nos defrontamos: os “demais” não são tratados como cidadãos, mas como inimigos. Universidade alguma, que eu saiba, ensina com todas as letras a “colaborar reciprocamente” mas antes a derrotar, a subjugar, a construir um sonho à custa da aniquilação dos sonhos de outros. Nossos patrícios não são encarados exatamente como patrícios mas como estranhos com quem dividimos alguns espaços.
Não bastasse isso, a cultura do sangue impresso ou transmitido via satélite estampa em suas capas a belicosidade como uma espécie de artigo a ser consumido por algum compartimento da consciência de outrem, nada mais.
Posso perceber em você a mesma sensação que
eu tenho: a de que as coisas estão trocadas.