Caim de Saramago

Acabei de ler o livro Caim de José Saramago.

Foi um presente de um irmão.

Tanto debate e consternação sobre este livro que muitos julgaram, julgam e continuarão a julgar que é um óptimo presente.

Oferecer um livro é, de facto, uma forma de demonstrar que se considera o ofertado uma pessoa evoluída, civilizada ou sensível.

Porém, este livro, tal como outros de Saramago, é um pouco mais que um presente, é um convite a uma discussão de contornos intelectuais, um debate milenar. É um convite para participar numa polémica, num esgrimir de razões e, se houver alguma possibilidade, adicionar algo a tudo isto.

Procurei dentro dele as ofensas à cultura judaico-cristã, mas não as encontrei.

Procurei as faltas de respeito, as distorções do Velho Testamento, mas não dei com elas, por muito que esmiuçasse as linhas e as entrelinhas.

Dei comigo a rir várias vezes e outras a matutar nas questões e acção da narrativa.

Encontrei humor e sedução, paródia e sátira, paixão e vingança.

Penso que a imprensa, os entendidos em teologia e religião que tão repetidas vezes gritaram contra este livro, que tantas vezes exigiram vingança ou um pedido de desculpas de Saramago, que ainda não leram o livro. É isso! Ou não leram o livro ou consideram que nem é necessário ler, sendo sabido que de Saramago só saem destas “parvoíces”.

O livro é sobretudo uma obra que questiona o inquestionável, que toca no intocável, que fala em livre arbítrio e responsabilidade.

Quem decidiu queimar Sodoma e Gomorra com todos os seus habitantes considerados culpados da culpa de homens só quererem deitar-se com homens, num frenesim erótico, homossexual? Deus!

Todos são culpados, assim, todos têm de morrer!

Claro está que o mesmo se passou na cabeça de H. Truman, presidente dos Estados Unidos da América que, tal como um Deus, destruiu Hiroshima e Nagasaki com todos os seus habitantes considerados igualmente culpados, culpados da culpa de serem inimigos, de serem japoneses.

Será que Deus é, no fundo, H. Truman? Não deve ser. Truman não consta do Velho Testamento.

Será que Deus que Caim questiona teimosamente é o mesmo que os legisladores que fazem leis que protegem pedófilos? Que condenam e executam intelectuais pelo mundo fora, que destroem a Amazónia e deixam à morte milhões de crianças por não se distribuir a riqueza por todos? Serão todos estes Deus? Se não é assim, questiona Saramago, que acharia Deus de tudo isto que se passa no Mundo?

Uma obra literária é uma obra de arte, como uma pintura, uma música ou um edifício. Algum de nós questionaria Pablo Picasso ou Goya por pintarem as guerras de Espanha?

Saramago não questiona nem ofende Deus, primeiro porque é ateu e, segundo, não se propôs a escrever um Tratado sobre Teologia, nem reescrever o Velho Testamento. Somente escreveu um livro de ficção, uma obra para nos entreter e desafiar. Nada mais.

Muitos reagiram aos comentários que fez no lançamento do seu livro.

Talvez tenha exagerado em algumas afirmações, mas se não o fizesse, então, Deus nos ajude, não seria o nosso Saramago.

A todos, boas leituras, se Deus quiser!