do outro lado do PORTAL
As lentes dos óculos estavam embaçadas com a névoa que caia espessa sobre a noite escura. A rua, de velhos paralelepípedos cor de bronze, permanecia silenciosa parecendo querer ouvir os passos que seguiam um caminho traçado a muito tempo, antes mesmo de brilhar a primeira estrela nesse canto de universo. Passou uma eternidade até aquele momento, mas agora tanta espera seria finalmente recompensada. Os olhos por, detrás das retinas, tentam identificar algum ponto de referência que o faça encontrar o portal com segurança. Não existe um só momento de hesitação, não existem dúvidas, não existe medo; apenas a consciência de que o momento é agora, a consciência de que o momento seguinte representará a conclusão dos fatos.
Quantas vidas havia vivido? Quantos mundos e espécies havia conhecido? Quantas vezes perguntou a si mesmo o sentido de tudo aquilo?
Agora, as perguntas não faziam mais sentido, todas as respostas foram dadas num único momento que se tornara eterno e magicamente transcendental. Seria preciso apenas caminhar, e o caminho já existia; e o caminho era aquele, onde as sombras revelavam um tapete de pétalas de rosas amarelas apontando para o infinito.
O portal estaria ali em algum lugar; mas porque ele não o encontrava? Tantas vezes havia sonhado com aquele momento; havia tecido no tear da mente uma tela onde desenhara várias fórmas diferentes de portais: Alguns luxuosos, outros humildes, alguns grandes, outros pequenos. Um que mais lhe agradara era a imagem de duas pilastras cilíndricas muito altas em estilo grego antigo abrindo passagem para um caminho que cortava a grama verde de uma planície salpicada de montículos de flores silvestres multicoloridas. Quase dava para sentir o cheiro suave quando fechava os olhos e viajava distante para seu mundo de criações, um mundo onde ele era deus, onde tudo acontecia e existia simplesmente porque assim o desejara, era bom sentir tal poder.
(Onde está o portal?)
O poder de fazer emergir universos como se fossem bolhas se soltando do fundo de um aquário viajando até a superfície azul por entre peixes ornamentais que nadam sem destino certo, nadando apenas por nadar.
(Se num átimo de tempo uma dessas bolhas colidisse com um peixe desatento, Bum !!! adeus universo.)
Como pode ser frágil a criação! Como números incontáveis de seres podem deixar de existir por motivo tão fútil! (Um peixe)
Mas os universos não param de emergir do fundo do aquário, não enquanto a mente ordenar que assim seja. Quais criaturas poderão existir em mundos que poderão vir a surgir na superfície de uma dessas bolhas? Quanto tempo um mundo desses estará materializado dentro deste espaço tempo? Quantos sóis poderão brilhar enquanto a bolha sobe até a superfície e se desintegra no espaço? O que poderão pensar tais criaturas? Até onde conseguirão ir na superfície da bolha?
Um espaço tempo tão curto entre o ser e o não ser, no entanto esse tempo chega a ser quase eterno e o espaço aproxima seus limites das fronteiras do infinito.
Perguntas que se vão, a muito, sem respostas. Perguntas amargas que se tornaram doces para o paladar acostumado com iguarias tão finas. Perguntas que se perderam como se perde a bolha quando se encontra com o ar fora do aquário. Perguntas que se perdem quando se encontram.
Há passos no calçamento cor de chumbo molhado de sereno, passos que podem muito bem ser apenas uma alucinação qualquer, apenas o desejo incontido de um inconsciente se manifestando na tela do existir. É preciso ir em frente, não que faça alguma diferença; mas seguir é a única maneira. Parar agora é se mesclar com o nada e o nada é o poço onde não é possível se contar os dias. Como se contar os dias fosse realmente importante!
(Parar não!) Não importa o motivo. Ou se há ou não motivo. (Parar não!)
Como se o nada fosse possível; Como se a existência de algo intangível pudesse fazer parte da natureza divina de todas as coisas.
(Parar não!) E se não vamos parar nunca, então até onde poderemos ir?... Talvez cruzar o universo por entre um número incontável de estrelas, mundos, planetas, nuvens... E seguindo sempre em frente, atingir os limites insondáveis do conhecimento, olhar para a frente e perceber que não há mais nada para ser visto ou sentido... Como se fosse possível não se sentir o nada!
Na frente o vazio, atrás de si o universo vai ficando cada vez mais distante, cada vez mais difícil de se distinguir na imensidão. Em um momento é apenas um ponto luminoso na escuridão; no outro nem mesmo esse insignificante ponto pode ser percebido e o universo de onde saiu é como se nunca houvesse existido e você, sozinho no centro do nada nem mesmo pode cogitar se o nada existe ou não, pois mesmo não percebendo nenhum ponto de luz na imensidão do abismo, sabe que algo está lá; pois foi de lá, em algum lugar de lá que você veio e portanto sabe que lá existe um universo do tamanho do infinito. Um universo que pulsa e brilha como um vagalume na noite de todas as noites.
As casas que margeiam as calçadas da rua são antigas mas muito bem conservadas. São casas que já abrigaram muitos sonhos e tantas desilusões, muitas alegrias e tantas tristezas, já viram chegar muitos e partir outros tantos, enfim! são casas iguais a todas as outras casas. Essas porém, em breve, vão presenciar algo de muito diferente acontecendo, talvez até mesmo espetacular. No momento em que aparecer o portal, a vida tomará, definitivamente, outro sentido para aquele ser que caminha o caminho. Assim ele espera, assim ele aguarda que seja, assim ele sonhou por uma vida... ou teria sido por muitas vidas?
Um passo ... Outro passo ... Agora ... a qualquer momento.
Ele sente um leve estremecimento como se um vento frio batesse em sua nuca e a realidade parece se distorcer como se uma força de atração estivesse sendo exercida em algum ponto qualquer. As imagens se misturam numa indefinição entre o passado e o presente, as casas da calçada tornam-se transparentes e se mesclam com imagens de montanhas que surgem de algum lugar distante no tempo. Ele não sente mais o caminhar, tão pouco os próprios passos. Sente apenas uma leveza igual a nada que já tenha sido percebido pelos seus sentidos até então. Então... seu corpo desaparece como uma gota de chuva que cai no oceano e apenas a consciência de existir permanece.
Noite. Uma longa noite de escuridão e silêncio. (escuridão) Apenas o pensamento e nada mais. Em menos de um segundo tudo deixou de existir: O sol já não brilha, a Lua não mais flutua na noite estrelada, os sons da natureza calaram suas milhares de vozes que dizem sins e nãos.
Terá realmente existido esse mundo que teima em deixar suas imagens distorcidas na mente confusa? Não terá sido apenas um sonho? Um rico sonho em detalhes, alegrias e sofrimentos?
A um segundo não havia dúvidas; no entanto, agora é tudo o que resta. (silêncio) Chega a machucar os tímpanos que não existem mais. Ou talvez nunca tenham existido.
O caminhar já não faz sentido, o caminho deixou de marcar os passos, espaços e tempos. Só resta esperar e confiar. (O pensamento não cala) É preciso deixar de pensar para poder sentir. É preciso ignorar fatos e conclusões para poder fluir com naturalidade a nova realidade. (consciência) (silêncio) A mente deve esvaziar. (vazio) (vazio) (vazio) Finalmente a paz, a sabedoria dita nas não palavras, a sabedoria que não se lê, não se vê, não se toca. Tudo é dito para aquele que está pronto para passar o portal, e ele passou, não saberia explicar como aconteceu, só sabe que aconteceu. O portal não se materializou como ele imaginou que aconteceria. Não houve show, não houve espetáculo, não houve hinos e nem júbilos, mas lá estava ele do lado de dentro. Só. Irremediavelmente só. No entanto, a solidão lhe era suave e ao mesmo tempo repleta de saber.