Muluh e a roda.
Muluh, minha melhor amiga, convidou-me—tínhamos quinze anos—para ir a um convento da cidade levar arroz, feijão, leite em pó, café e açúcar . Minha avó e a de Muluh ‘se quarteavam’, como diziam elas, nessa tarefa caridosa. Porém nunca havíamos ultrapassado os degraus que levavam à porta do Carmo e, pela primeira vez, adentraríamos mistérios que se grudavam às silenciosas e invisíveis freirinhas. Ninguém as via, nem familiares. Seu silêncio era para o mundo de comuns e fúteis que iam ao cinema, namoravam, cantavam ‘Carlos Gardel’ e ‘Conceição’ no chuveiro, acompanhavam novelas, dançavam de rosto colado, em reuniões dançantes do clube, só para citar algumas das pequenezas dos que ficavam do lado de fora de paredes e do muro, com mais de três metros de altura, que circundava aquele local.
Como é que conseguiam ficar caladas? Será que sabiam da vida de suas colegas de hábito? Nossas avós juravam que nem sequer se olhavam.
“Também”, observava Muluh,”com aquela coisa tapante que têm a cobrir-lhes cabeça e ombros , nem há muito mérito em não olhar para suas colegas cobertas de pano marrom. Simples: se andássemos vestidas como elas, olha, garanto que falaríamos bem menos!”
O voto de silêncio não incluía falar com Deus através do canto sacro em celebrações especiais. Apesar de não sermos católicas, íamos a essas missas para ouvir as vozes do coro de anjos que saíam dos furinhos em uma treliça , lá em cima, por trás do pequeno órgão. A música flutuava pela capela e Muluh e eu sentíamos que uma nuvem nos levava ao céu. Porém, nos degraus da saída, sempre concluíamos que a voz delas era diáfana—adorávamos esta palavra—porque as freiras se esforçavam para demonstrar como aquela rotina de sacrifícios era maravilhosa. Ao que Muluh retrucava:
“ Olha, alguém no mundo deve se sacrificar para que a gente possa ir ao cinema, namorar, cantar, dançar, dar gargalhadas e devorar uma banana split. Adoro as irmãzinhas que rezam pelo bem de nós todos! Agora, nem as melhores do Clube do Guri possuem voz afinada como a delas! Nossa, elas são campeãs de voz! Tenho certeza, juro, que o segredo é permanecer em silêncio! Quem sabe a gente experimenta?”
“Credo, iam acreditar que estávamos com laringite ou caxumba e iriam chamar o Dr. Percy. Juro que iam,” complementei. “ E o pior é que nem o médico acreditaria que era apenas um silêncio, como fala titia, ‘terapêutico’. “
Chegamos no portãozinho da entrada. Era subir alguns degraus e tocar o sininho que a senhora idosa da portaria—Muluh afirmava que fora candidata à freira, mas não passara pelas provas, aí contentara-se com abrir e fechar portas—logo nos receberia. E assim foi.
A porteira, Sra. Dorothea—lia-se o nome no avental bordado em ponto de cruz—, perguntou o que tínhamos nas sacolas de crochê. Aí, Muluh declarou, emendando tudo:
“Caféarrozaçucarfarinhaleiteempó!”
Dona Dorothea não entendeu nada. Abrimos as sacolas e fomos colocando cada item, separadamente, no chão de mosaicos.
“Ach, que meninas ‘querridas’! Trracento tanta coissa parra nossos popressinhos da crreche. Fão figar condentes! E o Babai do Céu, indon, nem si fala! Acora voceis chunta tudu e pota, uma bor uma no roda. Fou apri e quanto tiver cheia, voceis chira a roda que as iramãssinha peca lá tentro” , instruiu a Dona Dorothea com um sotaque forte.
Muluh embranqueceu. Dona Dorothea e eu trouxemos uma cadeira e Muluh despencou sobre ela. A senhora da portaria buscou um copo com água e açúcar e eu fui colocando, aos pouquinhos, o liquido para dentro dos lábios de Muluh. Em seguida, desatou num choro daqueles de sacudir o corpo todo. Não sabíamos o que fazer. Dona Dorothea puxou do avental um rosário e começou a desfiá-lo em alemão, bem baixinho.
Subitamente, minha amiga iniciou uma gritaria, parecia que dizia palavras repetidas, mas não conseguíamos entender. Dona Dorothea foi aumentando o volume de sua reza até quase emparelhar com o berreiro de Muluh. Enquanto isso, já havíamos pisoteado o saco de açúcar e o de feijão. Dona Dorothea, antes de colocar a cadeira, esmagou, com sua botina, os sacos de farinha e o de café. Enfim, restava apenas o leite Ninho.
Muluh agora gritava mais articuladamente:
“É uma roda! Não quero ver! Não girem a roda, por favor! Quero ir embora! Nunca mais venho aqui! A roda! A roda!”
Ficamos sem entender o que queria dizer. Para ser sincera, quando vi a bagunça da mistura dos gêneros alimentícios (termos de titia) espalhados pelo chão—atribuindo aos mosaicos novas cores e texturas—, as botinas de Dona Dorothea, a fúria da cantilena de rezas, a cara vermelha e o escabelamento de Muluh, comecei a rir e rir sem poder parar. Muluh e Dona Dorothea nem notaram que eu chorava de tanta gargalhada.
Então, o silêncio. Muluh levantou-se da cadeira, pegou meu braço, caminhou até a porta e escancarou-a. Arrastou-me para fora e mal pude acenar um adeusinho para dona Dorothea que o retribuiu, logo apos fazer o sinal da cruz.
“O que foi Muluh? O que deu em ti para soluçares e gritares como uma doida? Olha, desculpas pelas risadas, mas é que, bem no fundo ...”
Ela apertou meu braço e disse que pensara que seria apenas entregar as comidas lá e dar uma espiadela pelo convento. E suspirou: “Nunquinha que imaginei que tivessem uma roda lá! Imagina só, uma r-o-d-a! Que horror!”
Muluh obrigou-me a jurar pelo que havia de mais sagrado para mim que não diria nada, nadinha, do que acontecera na portaria do convento. Repetia que, se disséssemos qualquer coisa, seus avós saberiam que ela sabia o que nunca queriam que soubesse. E que se perguntassem se entregáramos tudo direitinho, responderíamos que sim, tudinho. Pensei que, afinal, era uma mentira para o bem, e jurei que podia confiar em sua melhor amiga.
Naquela hora desconsiderei a idéia de querer saber qualquer porquê do tal sabia que não queriam que soubesse. Outro dia, Muluh falaria sobre o que a espantara tanto.
Muluh, minha melhor amiga, convidou-me—tínhamos quinze anos—para ir a um convento da cidade levar arroz, feijão, leite em pó, café e açúcar . Minha avó e a de Muluh ‘se quarteavam’, como diziam elas, nessa tarefa caridosa. Porém nunca havíamos ultrapassado os degraus que levavam à porta do Carmo e, pela primeira vez, adentraríamos mistérios que se grudavam às silenciosas e invisíveis freirinhas. Ninguém as via, nem familiares. Seu silêncio era para o mundo de comuns e fúteis que iam ao cinema, namoravam, cantavam ‘Carlos Gardel’ e ‘Conceição’ no chuveiro, acompanhavam novelas, dançavam de rosto colado, em reuniões dançantes do clube, só para citar algumas das pequenezas dos que ficavam do lado de fora de paredes e do muro, com mais de três metros de altura, que circundava aquele local.
Como é que conseguiam ficar caladas? Será que sabiam da vida de suas colegas de hábito? Nossas avós juravam que nem sequer se olhavam.
“Também”, observava Muluh,”com aquela coisa tapante que têm a cobrir-lhes cabeça e ombros , nem há muito mérito em não olhar para suas colegas cobertas de pano marrom. Simples: se andássemos vestidas como elas, olha, garanto que falaríamos bem menos!”
O voto de silêncio não incluía falar com Deus através do canto sacro em celebrações especiais. Apesar de não sermos católicas, íamos a essas missas para ouvir as vozes do coro de anjos que saíam dos furinhos em uma treliça , lá em cima, por trás do pequeno órgão. A música flutuava pela capela e Muluh e eu sentíamos que uma nuvem nos levava ao céu. Porém, nos degraus da saída, sempre concluíamos que a voz delas era diáfana—adorávamos esta palavra—porque as freiras se esforçavam para demonstrar como aquela rotina de sacrifícios era maravilhosa. Ao que Muluh retrucava:
“ Olha, alguém no mundo deve se sacrificar para que a gente possa ir ao cinema, namorar, cantar, dançar, dar gargalhadas e devorar uma banana split. Adoro as irmãzinhas que rezam pelo bem de nós todos! Agora, nem as melhores do Clube do Guri possuem voz afinada como a delas! Nossa, elas são campeãs de voz! Tenho certeza, juro, que o segredo é permanecer em silêncio! Quem sabe a gente experimenta?”
“Credo, iam acreditar que estávamos com laringite ou caxumba e iriam chamar o Dr. Percy. Juro que iam,” complementei. “ E o pior é que nem o médico acreditaria que era apenas um silêncio, como fala titia, ‘terapêutico’. “
Chegamos no portãozinho da entrada. Era subir alguns degraus e tocar o sininho que a senhora idosa da portaria—Muluh afirmava que fora candidata à freira, mas não passara pelas provas, aí contentara-se com abrir e fechar portas—logo nos receberia. E assim foi.
A porteira, Sra. Dorothea—lia-se o nome no avental bordado em ponto de cruz—, perguntou o que tínhamos nas sacolas de crochê. Aí, Muluh declarou, emendando tudo:
“Caféarrozaçucarfarinhaleiteempó!”
Dona Dorothea não entendeu nada. Abrimos as sacolas e fomos colocando cada item, separadamente, no chão de mosaicos.
“Ach, que meninas ‘querridas’! Trracento tanta coissa parra nossos popressinhos da crreche. Fão figar condentes! E o Babai do Céu, indon, nem si fala! Acora voceis chunta tudu e pota, uma bor uma no roda. Fou apri e quanto tiver cheia, voceis chira a roda que as iramãssinha peca lá tentro” , instruiu a Dona Dorothea com um sotaque forte.
Muluh embranqueceu. Dona Dorothea e eu trouxemos uma cadeira e Muluh despencou sobre ela. A senhora da portaria buscou um copo com água e açúcar e eu fui colocando, aos pouquinhos, o liquido para dentro dos lábios de Muluh. Em seguida, desatou num choro daqueles de sacudir o corpo todo. Não sabíamos o que fazer. Dona Dorothea puxou do avental um rosário e começou a desfiá-lo em alemão, bem baixinho.
Subitamente, minha amiga iniciou uma gritaria, parecia que dizia palavras repetidas, mas não conseguíamos entender. Dona Dorothea foi aumentando o volume de sua reza até quase emparelhar com o berreiro de Muluh. Enquanto isso, já havíamos pisoteado o saco de açúcar e o de feijão. Dona Dorothea, antes de colocar a cadeira, esmagou, com sua botina, os sacos de farinha e o de café. Enfim, restava apenas o leite Ninho.
Muluh agora gritava mais articuladamente:
“É uma roda! Não quero ver! Não girem a roda, por favor! Quero ir embora! Nunca mais venho aqui! A roda! A roda!”
Ficamos sem entender o que queria dizer. Para ser sincera, quando vi a bagunça da mistura dos gêneros alimentícios (termos de titia) espalhados pelo chão—atribuindo aos mosaicos novas cores e texturas—, as botinas de Dona Dorothea, a fúria da cantilena de rezas, a cara vermelha e o escabelamento de Muluh, comecei a rir e rir sem poder parar. Muluh e Dona Dorothea nem notaram que eu chorava de tanta gargalhada.
Então, o silêncio. Muluh levantou-se da cadeira, pegou meu braço, caminhou até a porta e escancarou-a. Arrastou-me para fora e mal pude acenar um adeusinho para dona Dorothea que o retribuiu, logo apos fazer o sinal da cruz.
“O que foi Muluh? O que deu em ti para soluçares e gritares como uma doida? Olha, desculpas pelas risadas, mas é que, bem no fundo ...”
Ela apertou meu braço e disse que pensara que seria apenas entregar as comidas lá e dar uma espiadela pelo convento. E suspirou: “Nunquinha que imaginei que tivessem uma roda lá! Imagina só, uma r-o-d-a! Que horror!”
Muluh obrigou-me a jurar pelo que havia de mais sagrado para mim que não diria nada, nadinha, do que acontecera na portaria do convento. Repetia que, se disséssemos qualquer coisa, seus avós saberiam que ela sabia o que nunca queriam que soubesse. E que se perguntassem se entregáramos tudo direitinho, responderíamos que sim, tudinho. Pensei que, afinal, era uma mentira para o bem, e jurei que podia confiar em sua melhor amiga.
Naquela hora desconsiderei a idéia de querer saber qualquer porquê do tal sabia que não queriam que soubesse. Outro dia, Muluh falaria sobre o que a espantara tanto.