Minha amiga Muluh: o que há em um nome?
Conheço Muluh desde criança. Morávamos na mesma rua e tínhamos bonecas parecidas que tomavam chá juntas, aos domingos.
Ainda naquela época, queria saber se Muluh era apelido—também tinha um—ou se era assim mesmo que se chamava. Respondeu que a história era comprida como as tranças de Rapunzel, mas , se eu quisesse, de verdade, saber, contaria o porquê desse nome. Sua avó chamou-a para o almoço, e ficou para outra vez a explicação. Repartíamos até o fato de morarmos com os avós, além de alguma semelhança física: vizinhos diziam que parecíamos, no mínimo, primas.
Minha bisavó achava Muluh um nome lindo e comecei a querer ser Muluh, apesar de discordar com ela a respeito de Muluh Maria. Isso não combinava de jeito nenhum, porém, como minha bisavó chamava-se Maria, fiquei calada, enquanto imagens de colegas rindo durante a chamada, no início da aula, passavam correndo por minha cabeça.
Num final de abril de excesso de chuvisqueiros, enquanto preparávamos suco de bergamotas, ainda meio verdes, no espremedor de vidro azulado que vovó ganhara de Natal, Muluh resolveu esclarecer o que havia à sombra de seu nome :
“Pouco antes de eu nascer, um avô, que mal e mal conheço, lia um romance alemão, sei lá qual, cuja história—conforme o tal avô—era extremamente dramática (bem desse jeito falou), pois começara a ler a primeira página e só conseguira largar o livro quando ia trabalhar. Minha avó completou que, então, poderia lê-lo numa sentada, já que nunca se matara de trabalhar… Bem, mas, sei lá por que cargas d’água , botou na cabeça que se nascesse uma menina receberia como nome Muluh. Se fosse menino, Solweg era o nome selecionado. Aliás, esse meu avô tinha um nome tão comprido que parecia um duque, e seus filhos--meus tios--receberam cada nome que, quando os digo, meus colegas juram que estou mentindo! Outro dia te falo. Olha, ainda bem que nasci menina, se fosse menino teria que carregar um nome complicado que ninguém saberia pronunciar certinho . Nem vais acreditar, mas, há uns tempos morreu um tal de Solweg não-sei-das-quantas que havia sido colega de quartel de vovô . Bom, Muluh era a heroína que chorava muito, era pura bondade, e dona de beleza germânica que encantava rapazes, menos aquele por quem se derretia de amor. Pobre Muluh do livro! Como é que alguém que pensa um pouquinho tem o desplante de escolher um nome cheio de lágrimas para uma neta? Minha avó afirmava que, afinal, a Muluh da história casara com pessoa boa, tivera filhos, apesar de um outro, em muitos momentos, saltitar em seu coração. E, tivesse ela casado com seu amado, teria ficado viúva bem cedo: o moço morrera em um campo de batalha qualquer da Europa. Vovó, creio que para me consolar, acrescentou que era melhor ser Muluh do que Ramona, um nome que trazia má sorte para qualquer uma com tal nome : Ramona parecia símbolo de infelicidade. Para mim, o pior é ter de repetir várias vezes meu nome quando querem saber como me chamo. Fazem: ‘Hã?’ Hãã?. E lá vou eu, de novo, repetir, devagar e alto, M-U-L-U-H ! ”
Fiquei enfeitiçada : por que não me chamava Muluh? Na minha turma do fundamental—antigo primário—havia quatro com meu nome. Por sorte, os professores, naquela escola, chamavam a gente pelo sobrenome! Garanto que minha amiga era única na chamada. No entanto, ela retrucava que isso era horrível: o primeiro nome lembrado era, infalivelmente, o dela. Por isso, devia estar sempre com temas de casa, leituras, mapas, matérias na ponta da língua. Queria se chamar Vera, nome curto, fácil e no final da lista da escola. Ninguém pediria, com ‘Hã? Hãã?”, para repetir e soletrar um nome como Vera ou Sueli, simples e bem brasileiros.
Nossas bonecas chamavam-se Lisbeth. E quem inventou esse nome estrangeiro? Adoramos as bonecas que, no pacote de Natal, já chegaram ‘Lisbeth’. A melhor amiga da avó de Muluh chamava-se assim, com o ‘th’ e tudo, e , como havia morrido um mês antes do Natal, a boneca representou uma homenagem à falecida. E a minha Lisbeth: titia adorava sua cunhada Lisbeth, toda encurvada de artrite , e, aí, lá fiquei carregando—com muito carinho—uma boneca linda, com nome de pessoa bem idosa, que me acompanhou por quase duas décadas.
Gostávamos de inventar histórias. Queríamos crescer e ler muito-muito. Seríamos escritoras. Muluh e eu tínhamos já os nomes sob os quais esconderíamos nossa identidade—para evitar problemas com as famílias, exageradamente rigorosas. Se abríssemos o bico e colocássemos, em papel, trama fora da linha que pudesse, de longe, remeter a esqueletos no armário, receberíamos condenação. Mudar de nome era a solução. Uma seria Vera Maria e a outra , eu, uma semana decidia-se por Sigrid, para, depois, escolher por Marjorie. Havia tempo para resolver.
Conheço Muluh desde criança. Morávamos na mesma rua e tínhamos bonecas parecidas que tomavam chá juntas, aos domingos.
Ainda naquela época, queria saber se Muluh era apelido—também tinha um—ou se era assim mesmo que se chamava. Respondeu que a história era comprida como as tranças de Rapunzel, mas , se eu quisesse, de verdade, saber, contaria o porquê desse nome. Sua avó chamou-a para o almoço, e ficou para outra vez a explicação. Repartíamos até o fato de morarmos com os avós, além de alguma semelhança física: vizinhos diziam que parecíamos, no mínimo, primas.
Minha bisavó achava Muluh um nome lindo e comecei a querer ser Muluh, apesar de discordar com ela a respeito de Muluh Maria. Isso não combinava de jeito nenhum, porém, como minha bisavó chamava-se Maria, fiquei calada, enquanto imagens de colegas rindo durante a chamada, no início da aula, passavam correndo por minha cabeça.
Num final de abril de excesso de chuvisqueiros, enquanto preparávamos suco de bergamotas, ainda meio verdes, no espremedor de vidro azulado que vovó ganhara de Natal, Muluh resolveu esclarecer o que havia à sombra de seu nome :
“Pouco antes de eu nascer, um avô, que mal e mal conheço, lia um romance alemão, sei lá qual, cuja história—conforme o tal avô—era extremamente dramática (bem desse jeito falou), pois começara a ler a primeira página e só conseguira largar o livro quando ia trabalhar. Minha avó completou que, então, poderia lê-lo numa sentada, já que nunca se matara de trabalhar… Bem, mas, sei lá por que cargas d’água , botou na cabeça que se nascesse uma menina receberia como nome Muluh. Se fosse menino, Solweg era o nome selecionado. Aliás, esse meu avô tinha um nome tão comprido que parecia um duque, e seus filhos--meus tios--receberam cada nome que, quando os digo, meus colegas juram que estou mentindo! Outro dia te falo. Olha, ainda bem que nasci menina, se fosse menino teria que carregar um nome complicado que ninguém saberia pronunciar certinho . Nem vais acreditar, mas, há uns tempos morreu um tal de Solweg não-sei-das-quantas que havia sido colega de quartel de vovô . Bom, Muluh era a heroína que chorava muito, era pura bondade, e dona de beleza germânica que encantava rapazes, menos aquele por quem se derretia de amor. Pobre Muluh do livro! Como é que alguém que pensa um pouquinho tem o desplante de escolher um nome cheio de lágrimas para uma neta? Minha avó afirmava que, afinal, a Muluh da história casara com pessoa boa, tivera filhos, apesar de um outro, em muitos momentos, saltitar em seu coração. E, tivesse ela casado com seu amado, teria ficado viúva bem cedo: o moço morrera em um campo de batalha qualquer da Europa. Vovó, creio que para me consolar, acrescentou que era melhor ser Muluh do que Ramona, um nome que trazia má sorte para qualquer uma com tal nome : Ramona parecia símbolo de infelicidade. Para mim, o pior é ter de repetir várias vezes meu nome quando querem saber como me chamo. Fazem: ‘Hã?’ Hãã?. E lá vou eu, de novo, repetir, devagar e alto, M-U-L-U-H ! ”
Fiquei enfeitiçada : por que não me chamava Muluh? Na minha turma do fundamental—antigo primário—havia quatro com meu nome. Por sorte, os professores, naquela escola, chamavam a gente pelo sobrenome! Garanto que minha amiga era única na chamada. No entanto, ela retrucava que isso era horrível: o primeiro nome lembrado era, infalivelmente, o dela. Por isso, devia estar sempre com temas de casa, leituras, mapas, matérias na ponta da língua. Queria se chamar Vera, nome curto, fácil e no final da lista da escola. Ninguém pediria, com ‘Hã? Hãã?”, para repetir e soletrar um nome como Vera ou Sueli, simples e bem brasileiros.
Nossas bonecas chamavam-se Lisbeth. E quem inventou esse nome estrangeiro? Adoramos as bonecas que, no pacote de Natal, já chegaram ‘Lisbeth’. A melhor amiga da avó de Muluh chamava-se assim, com o ‘th’ e tudo, e , como havia morrido um mês antes do Natal, a boneca representou uma homenagem à falecida. E a minha Lisbeth: titia adorava sua cunhada Lisbeth, toda encurvada de artrite , e, aí, lá fiquei carregando—com muito carinho—uma boneca linda, com nome de pessoa bem idosa, que me acompanhou por quase duas décadas.
Gostávamos de inventar histórias. Queríamos crescer e ler muito-muito. Seríamos escritoras. Muluh e eu tínhamos já os nomes sob os quais esconderíamos nossa identidade—para evitar problemas com as famílias, exageradamente rigorosas. Se abríssemos o bico e colocássemos, em papel, trama fora da linha que pudesse, de longe, remeter a esqueletos no armário, receberíamos condenação. Mudar de nome era a solução. Uma seria Vera Maria e a outra , eu, uma semana decidia-se por Sigrid, para, depois, escolher por Marjorie. Havia tempo para resolver.