Na carona dos anos

Eu particularmente não tenho nada contra idosos, muito menos a favor, eles são seres humanos como todo mundo com a única diferença de já terem visto mais verões dentro desse conceito que eu (deveria dizer particularmente, mas ia acabar numa repetição muitíssimo anti-estética) digo que é pra lá de abstrato, velhos e jovens não existem realmente segundo a física. Essa lei é absolutamente contestada no ambiente selvagem do transporte coletivo.

Tenho todo um levantamento etnográfico dessa disputa diária entre senhores carregando sacolas de sei lá o que com todo mundo que não apresenta rugas faciais, cabeleira branca ou mesmo combinações de sandálias com traje social e um exuberante chapéu. Pode até parecer um protesto preconceituoso contra a derradeira terceira idade mas não é, há bons velhos por aí, esse é um levante protestante textual contra a pressão exercida por eles contra todos no ônibus.

Pego diariamente uma via que é caminho do hospital e alguém uma vez disse que se parece com um ônibus do Resident Evil sendo invadido por zumbis, coisa que eu desaprovo pois zumbis são mil vezes mais inofensivos do que velhinhas inquisidoras. Elas entram com suas sacolas misteriosas e nos fuzilam furiosamente com o olhar, convertem todas as suas rugas em uma expressão que faz sentir-nos uns covardes sentados, golpistas, mal-criados e fora dos padrões sociais adequados para os critérios de definição de mundo da terceira idade, ficamos esperando levar uma boa pancada daquela sacola colorida.

Velhos cantores de voz muito rouca soltam-se para seus amigos (outros velhos cantores de voz muito rouca) apesar de terem lhes conhecido cinco minutos atrás no terminal rodoviário, tudo isso na maior atitude jovem “nonsense” de que não estou nem aí para vocês. Isso é outra coisa que incomoda a cegueira da justiça, se eu estivesse cantando lá naquele banco mais alto eles me desaprovariam e me aplicariam um sermão que eu nunca mais andaria de ônibus.

A medicina também avança nos ônibus, já listei nomes de mais de seiscentos e quarenta moléstias do corpo sendo que algumas não são ainda conhecidas pela medicina atual e constei também que as pessoas que mais morrem no mundo todo são primas, tias e comadres de alguém que já passou dos sessenta e cinco anos. Aos pares eles conversam sobre doenças em voz alta nos ameaçando com um fim virulento e dolorido como se quisessem nos aterrorizar com essa história de passagem dos anos e como se eles mesmos estivessem no fim de suas vidas, hão de reclamar até os noventa eu imagino.

Isso tudo eu tenho certeza que é proposital, uma pessoa pode durante a vida perder a memória e um pouco da coordenação motora mas nunca perde o juízo e a importantíssima lista de coisas que se pode e não pode fazer, idolatrada por alguns, ignorada por pessoas que sabem aproveitar a carona de seus anos, e de graça!