Testemunha Ocular
Contar tudo o que sei? Concerteza, que eu sou pessoa que nunca me furto aos deveres. Então, o que posso dizer é que a senhora era uma excelente pessoa. Sempre muito correcta, muito fina, via-se que tinha classe pelo vestir, muito aprumada mas discreta. Eu até pensei que trabalhasse num banco ou assim mas um dia até trocamos dois dedos de conversa aqui nas escadas quando eu ia a descer com o meu Piruças e ela vinha a entrar, já tarde como habitual, respondeu-me que não, que era jornalista. Freelancer, disse-me, na altura nem entendi mas depois perguntei ao meu Constâncio. Estou a dispersar-me? Perdão, é por causa desta minha mania de ser rigorosa e exaustiva para tentar não me esquecer de nada pois desejo de todo o coração que descubram o malvado que cometeu esta atrocidade. Onde já se viu, uma senhora tão bem posta acabar morta desta maneira, eu nem ando em mim com esta história macabra. Pois, realmente ela chegava sempre assim p’ró tarde. Eu geralmente dava conta pois não me deito cedo, não é, e o Piruças que já não vai para novo precisa sempre do seu xixizinho antes de dormir. De modo que muitas das vezes eu andava qui na rua por volta da uma da manhã e via-a entrar. Sempre me falou muito bem que Deus a tenha em descanso. Sim, de facto, nos últimos meses chegava algumas vezes acompanhada. O que acontecia é que por vezes ela chegava mais tarde. Ora eu há noites que tenho dificuldade em adormecer. E lá calhava levantar-me para fazer um cházinho de alface para me calmar os nervos, claro está, pelo sim pelo não, espreitava pelo óculo da porta para ver quem entrava, hoje em dia uma pessoa tem um certo receio e verifica, não é? Eram eles, a senhora e o moço. Pareceu-me muito bem apessoado. Olhei bem para ele, que olhar não arranca bocado, não é assim? Peço desculpa, continuo sim senhor. Era alto, o cabelo era claro e ondulado. Mas acham que foi ele? Quer dizer, eu tenho andado a dizer ao meu Constâncio que havia qualquer coisa de errado nesta história. Eu bem dizia e ele a mandar-me ter juizo que não me metesse na vida dos outros. E agora isto. Eu bem que pressentia qualquer coisa...Até porque na ultima semana deixei de o ver. Há dois dias atrás entrou com um homem. Era baixote mas forte. Nunca o tinha visto cá no prédio. Será que foi esse? Não me admirava nada. Vi logo que tinha má pinta.