De Médico, Poeta e Louco...
De Médico, Poeta e Louco...
À medida que os anos passam, nosso passado cresce, o presente é mais valorizado e o futuro cada vez menos incerto.
Esse pensamento inicial visa justificar: sempre ao conversarmos com pessoas da “melhor idade” é freqüente a ocorrência de casos passados.
Assim tive necessidade de deixar minha sossegada e musical pequena cidade do sul de Minas, cravada no verde da serra e banhada pelo barrento do rio, para ir à megálopole com sua agitação e ruídos.
Felizmente a viagem no “mercedão”, que previa chatíssima, com todas as janelas fechadas e aquele ar viciado, pois agora não existem mais ônibus interestaduais sem ar condicionado, tornou-se bastante agradável graças à companhia de viagem.
Suas rugas, o pouco cabelo grisalho que lhe restara, seu franco sorriso e sua facilidade de comunicação acusavam, que seu passado era longo e bem vivido.
Sem rodeios, quebrou o silêncio e propôs a seguinte tese: se observarmos nossos grupos sociais de convívio, inclusive os do ambiente de trabalho, concluímos que, alguns, apesar de todos nós sermos dotados de pouco do médico, do poeta e do louco, na maioria de suas atuações inesquecíveis, exageraram no desempenho de uma ou mais das três.
Aí, passou a ilustrar sua tese.
Disse-me que como todas as empresas grandes, a companhia onde trabalhara era estruturada em diversas áreas.
Contou-me, que um dos companheiros de setor de trabalho tinha o hábito de expressar-se com gritos e gestos de lutas orientais. E continuou...
Certo dia surgiu no grande salão, que deveria ser de muito trabalho, mas era de ociosidade compulsória, um companheiro de trabalho de outro setor que, por coincidência, tinha hábito semelhante. Entrou no salão, avistou o outro adepto de exercício do louco e, aos gritos, encenando posições de luta, caminhou em direção ao fundo do salão como se quisesse atacá-lo.
Lá, onde meu companheiro de trabalho encontrava-se, existiam dois armários de madeira.
A cena implicou em que todos parassem de jogar batalha naval, ou a conversa que estava rolando, ou de alguma atividade mais interessante, para reduzir a violência da forma de matar o tempo. Todos pararam para assistir aos dois “samurais”.
O visitante ao aproximar-se e simular o golpe, foi surpreendido por um contragolpe e arremessado sobre os armários.
Risos e exclamações. Risos pelo grotesco e inesperado da cena e exclamações de preocupação com a integridade física do companheiro visitante.
Nesse mesmo grande salão vinha gente de todos os setores para serem atendidos, por outro companheiro que, se denunciado, certamente seria processado por exercício ilegal da profissão de massagista. Era a manifestação do exagero do seu pouco de médico.
Ao terminar suas sessões de uma espécie de “shiatsu intuitivo”, que aconteciam sem qualquer privacidade, o falso terapeuta dirigia-se ao banheiro e durante uns três minutos deixava a água da torneira da pia correr por seus braços e mãos. A seguir sacudia os braços com força para retirar a água retida. Quando perguntavam o porquê daquela espécie de ritual, respondia: “é para retirar o que estava incomodando o companheiro e evitar as conseqüentes transferências para mim”.
Interrompeu sua narrativa e olhou-me como pedindo algum sinal de aprovação para continuar ou de que não estava sendo inoportuno.
Sinalizei com sorriso acompanhado de indagação desafiante: a sua prazerosa narrativa, ainda está devendo para completar a ilustração de sua tese o caso do exagero do “pouco poeta”.
Nem mal acabara de afirmar o interesse e a narrativa de “causos do passado” reiniciou.
Falou que se formara na área de informação e comunicação e que na sua empresa trabalhava no setor responsável por uma série de prestação de serviços dessa natureza: biblioteca; microfilmagem; cópias, protocolo e arquivo de documentos.
Sobre o protagonista desse último exemplo disse que, até em casa, comunicava-se por escrito e não perdia a oportunidade em celebrações de “baixar a caneta”, ou seja, de soltar o poeta enrustido.
A agradável companhia de viagem narrou que o protagonista da ilustração afixou no quadro de comunicação interna de sua área de trabalho a seguinte mensagem de festas de fim de ano:
Aos companheiros da Divisão de Documentação - DIDOC
Desejamos que no ano que está para iniciar-se:
- o Protocolo receba fluxos de energia positiva das entidades externas e distribua, para todos nós, de forma a transformar nosso ambiente de trabalho;
- a Reprografia reproduza e divulgue decisões calçadas na justiça, bem como mensagens de integração para promover nosso desenvolvimento;
- o Arquivo Geral expurgue as nossas mágoas e ressentimentos que ainda persistem, para que não atrapalhem nossas realizações;
- a Biblioteca e o Centro de Informações Técnicas forneçam pesquisas que fortaleçam em nós a lealdade, a justiça e a solidariedade;
- o Arquivo Técnico nos forneça os desenhos construtivos para edificarmos uma sociedade melhor;
- a Microfilmagem cuide para preservar as informações de paz e amor;
- o Apoio municie todas as outras áreas da nossa divisão de materiais afetivos e de serviços de manutenção da harmonia e bem estar no ambiente.
- a todos nós, aos outros companheiros da companhia e nossos familiares que consigamos, quando esse ano que se inicia acabar, ter a convicção e a alegria por nossa participação da construção de uma sociedade melhor e mais feliz.
Sorri, demonstrando o quanto me agradara sua companhia e seus “causos”. Entretanto, não me contive e fiz-lhe o seguinte questionamento. Pela sua narrativa o trabalho não era prioridade em sua empresa, como pode sustentar-se?
Respondeu-me demonstrando frustração.
Caro companheiro de viagem, a empresa na qual trabalhei por mais de vinte e cinco anos tinha como seu maior acionista o governo. Havia nessa época dos casos narrados, uma campanha para privatização ou concessões das empresas estatais. As administrações, representantes do governo, tinham o propósito de demonstrar que funcionavam mal. A seguir, antes da privatização faziam a tão difundida reengenharia de forma que passassem às administrações privadas, dentro de padrões mínimos de eficiência e produtividade.
Esse último caso motivado por sua indagação, não ilustra exageros do pouco de médico, poeta e louco que existe em nós. Ilustra os exageros do muito de amoralidade nos poucos que administram os bens e serviços públicos.