DO JEITINHO QUE O DIABO GOSTA!

3/10/2009

CRÔNICA – ESTURATO/2009

 

Do jeitinho que o diabo gosta!

... 6 horas da tarde, de uma sexta feira, hora “do jeitinho que o diabo gosta”!

O transito está amarrado, não deslancha. Os carros formam quatro filas, como cabides de roupas em armário apertado.

Dentro do ônibus eu não encontro espaço nem para pensar, Se mudo um pé do lugar não encontro outro espaço pra recolocá-lo.

O semblante das pessoas dentro do ônibus me lembra peixes na banca de feira. Rostos impassíveis, olhos que não vêm, mãos agarradas ao balaústre, como se o mesmo fosse tábua de salvação num mar sem ondas. Os que estão sentados viram o rosto do lado da janela sem nenhum interesse. Suas cabeças devem estar a mil, centradas em solução de problemas acumulados no dia, mães a caminho do terceiro período de trabalho, esperando encontrar em casa, à salvo, filhos, marido e a casa inteira. Uma louuucuraaa!

A temperatura do dia chegou a 37⁰C.

Dentro do ônibus um bafo morno e fétido emana de algum ponto difícil de distinguir entre o apinhado de gente. Rezei pra não ficar embaixo de nenhum sovaco. Não agüentaria. Estou grávida. Grávida e de pé segurando o balaústre... Nem um “filho de deus” oferece seu lugar. Então encosto no banco e empurro o barrigão no ombro de um jovem pra ver se ele se toca... Parece que sim: “por favor, senhora, pode se sentar”. Agradeço e me sento... Isso até alguém também se encostar, sem querer, no meu ombro e me pedir pra carregar seu saco de compras. Eu pego – sou gentil!

Agora, o trânsito para de vez!

Alguns passageiros se curvam - os que estão em posição de curvar-se, naturalmente - e bufam, olham pela janela pra ver a expressão dos passageiros do ônibus ao lado. O semblante de conformismo, cansaço é o mesmo das pessoas de cá e de lá – fazer o que, né? Na catraca o movimento de passageiros é intenso. O cobrador, impassível e recostado em seu banco, trabalha quieto atendendo os passageiros. Recebe o dinheiro, faz o troco e apenas se movimenta quando um idoso lhe apresenta seu cartão de passe livre e ele o passa pelo equipamento apropriado. Ele também sente o calor o abafamento. Então se espicha todo e empurra a tampa da abertura de ventilação. Alguns passageiros o aplaudem. Ufa!

Nas calçadas, gente apressada, quase correndo, entra no Metrô. Levam sacolas, marmitas, agasalho e guarda-chuva e desaparecem em busca da bilheteria, que a esta hora, dever ter uma fila de virar quarteirão.

Na fileira de carros ao lado do ônibus, um ou dois sujeitos descansam a mão na buzina na falta de algo mais interessante pra fazer... Só eles querem chegar a algum lugar - continuo a pensar comigo mesma, com vontade de levantar voo e sair pelo teto do ônibus com a palavra mágica, "Shazan"!

Mas, se não bastasse tudo isso, eis que, mais à frente, dá início a atividade de um trio elétrico... Um trio elétrico a essa hora? Pois é uma boa hora..., ou não? Agora já não falta mais nada... ou falta? Se falta um megafone, agora não falta mais! Um megafone estridente anuncia um comício do PT na Praça do Correio... às 20h., convocando a todos para greve geral.

O trânsito continua parado e as pessoas dentro do ônibus, a essa altura, estão pasmas! Umas olham para as outras, mas o calor não os permite fazer comentário algum.

De repente, um crioulo de dois metros de altura com o mesmo tanto de largura se levanta, lá do último banco, e vem... e vem com tudo! Passa pela catraca se equilibrando com uma bíblia na mão e vai em frente, tentando passagem, se agarrando de um lado ao outro dos balaústres até chegar à porta que, à essa altura, já estava aberta, e antes de descer, recita um fascículo de Jó. Os passageiros - e eu ali entre eles – ficamos todos ao mesmo tempo pasmos e aparvalhados, olhando pro crioulo!

Aproveitando o embalo e a porta aberta, alguns passageiros descem também e eu junto!

Seguimos o homem que vai se acotovelando nos carros e se esgueirando até o local de onde vinha a voz do megafone.

O barulho é infernal!

Um orador, daqueles de frases feitas, berra a plenos pulmões a necessidade da greve, de cima de um caminhão e acima do sofrimento de todos os mortais cansados, famintos e mal cheirosos. Feito um deus anunciando o dia do juízo final!

O crioulo, a cara impassível, se chega perto do caminhão, guarda a bíblia no bolso de dentro do paletó e sobe. Pega o orador com megafone e tudo, e joga-o pra fora do outro lado da calçada. Não houve tempo de evitar o acontecido... O homem voou por cima dos carros até a calçada.

Em baixo, adeptos do orador intervêm. Sobem no caminhão e tentam - eu disse, tentam - botá-lo de lá pra fora. Mas o sujeito está muito irado e sobra bofetões pra todos os lados! O crioulo parece um gigante e dos bem fornidos. O cara consegue driblar a todos até a chegada da polícia - não me perguntem como a polícia conseguiu chegar ao pedaço. Aproveitando os ânimos acirrados, pessoas ali presentes resolvem tirar diferenças nos tapas, socos, pontapés e empurrões.

De repente, sem mais aquela, algum louco resolve dar tiros pro ar. Com os estampidos o corre-corre e o empurra-empurra são gerais! A polícia aproveita e desce o cassetete nos mais próximos. Tem neguinho entrando como pode nos estabelecimentos dos comerciantes menos espertos que, até aquele momento, não haviam fechado as portas de suas lojas.

E o trânsito continua parado!

No caminhão, o sistema de autofalantes estanca. Em lugar da música e da voz estridente outro som se ouve... O som estridente da sirene do camburão.

O crioulo, naquela confusão toda, escafedeu-se.

Os policiais, como sempre muito competentes, no alto da autoridade que lhes é concedida, agarram aos pescoções os cidadãos mais exaltados e os jogam no camburão como sacos de cebola.

O camburão se afasta com o sinaleiro piscando vermelho e branco e a sirene à todo volume.

Aos poucos os ânimos vão se acalmando. Os curiosos se movimentam em seus cuidados habituais e o local volta à normalidade. À normalidade de uma hora atrás!

Eu, ali na confusão toda, caminhando ao lado de uma pessoa estranha que jamais havia visto antes, teço comentários sobre o ocorrido, bem baixinho, como num velório, e entro no ônibus novamente sem me despedir do cidadão!

Agora são 6:50h. da tarde de uma sexta-feira. Hora do jeitinho que o diabo gosta!!!

Esturato/2009

Esturato
Enviado por Esturato em 07/11/2009
Código do texto: T1910868
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