Colonizadas... mas arrogantes.

Conversando com uma querida amiga recantista que, como eu, cometeu o desatino de querer ser uma arquiteta -- e agora cumpre dolorosamente o seu carma voluntário -- chegamos à conclusão de que, em alguns casos, chamar alguém de "cliente chato" é o mais rematado pleonasmo. Eu, graças a um acesso benéfico de juízo e lucidez, mudei esse carma na marra, abandonando de vez a profissão. Já a nossa amiga, por motivos que não vem ao caso questionar, ainda não pôde se exorcizar desse encosto profissional. Sorte nossa, que ainda temos uma excelente e paciente profissional atuando no mercado. E isso é beeem raro...

Estive me lembrando de algumas pessoas que só confirmaram a nossa conclusão sobre o pleonasmo.

A maioria vinha com um orçamento que dava pra, no máximo, projetar e construir um barraco, mas exigia um castelo de oito torres e seiscentos quartos, como se a gente pudesse operar milagres.

Não tinha um que não quisesse uma bay-window*. Eu explicava pacientemente que, por causa do clima quase sempre quente a muuuito quente daqui de Brasília, só seria viável uma dessas se estivesse voltada pro sul -- o que nem sempre coincidia com o lado onde o cliente queria porque queria botar a dita cuja. Sem contar que o meu estilo econômico, limpo e bastante adequado ao clima tropical, dificilmente combinaria com esses inglesismos românticos.

Telhado de ardósia, com inclinação bastante acentuada, prontinho pra receber a próxima nevasca ou recolher toda a radiação solar no verão, não foram poucos os que me pediram. Eu pacientemente lhes dizia, bem explicadinho, que esse tipo de telhado cai muito bem lá no clima europeu, porque neeevaaa, mas que o terreno deles se situava em Brasília, no cerrado, clima tropical queeeeente, frequentemente semi-desértico, portanto...

Chalé alpino, então, foram dezenas de pedidos! A explicação que eu dava era a mesma que servia pro telhado de ardósia. Eles então diziam: "Mas um primo meu fez ali no Lago Sul!" E eu argumentava: "Já esteve lá dentro num dia muito quente?" A resposta quase sempre era: "Claro que já... e estava bem fresquinho!" E eu :"Por acaso não teria ar condicionado em todos os cômodos?" Bingo!

Mas as campeãs de chateação foram duas criaturas, nascidas num meio humilde, mas que, tendo morado alguns anos na França e dado um up-grade no poder aquisitivo, se achavam!

Um dia vieram me encomendar um projeto:

-- Nós queremos uma mansarda, igual a do nosso amigo Fulanô de Parrrri.

-- Ah, sim? Mas a sua casa já tem um sótão ou vocês querem fazer uma reforma de modo a criar um? -- eu perguntei.

Elas, então, se entreolharam caprichando na expressão que queria dizer "ela é burra ou é louca?"

-- ... O que o sótão tem a ver com a mansarda? -- elas, "delicadamente", me responderam com esta pergunta.

Aí foi a minha vez de ficar com uma expressão de surpresa total.

-- Ora, tudo! Afinal, mansarda é aquela janelinha que ressalta do telhado -- e fiz um breve croquizinho explicativo -- e que serve pra iluminar e ventilar o sótão.

Nova entreolhada, desta vez como a confirmar "ela é buuuurrrrraaaa!"

-- Na-na-não. Mansarda é uma casinhola no fundo do quintal. -- veio ligeira a arrogante contestação.

Eu sorri e, ainda mantendo a minha natural polidez profissional, bem como uma robusta dose de paciência de Jó, emendei:

-- Acho que há um pequeno equívoco aqui... A casinhola no fundo do quintal é uma edícula.

Agora, sem nem perder mais tempo com entreolhares, a mais arrogante das duas lascou essa:

-- Você quer saber mais do que o Fulanô, parisiense legítimo, criado na mais pura cultura francesa? Sempre que ia à nossa casa em (aqui ela citou uma cidadezinha francesa), que tinha nos fundos uma casinhola para hóspedes, ele suspirava e dizia: "Que delícia de lugar, me lembra tanto a minha saudosa e querida mansarda!"... ele falava "mãnsárrrde", naturalmente, ãn frrrãncé...

Se elas não fossem tão arrogantes, eu teria deixado passar batido e iria direto ao assunto -- afinal, o que é que elas queriam mesmo?

Mas, com um suspiro de resignação e com a minha melhor sobriedade profissional, respondi:

-- Eu não conheço o Fulanô, nem sei se ele é arquiteto, mas, aqui no Brasil e em Portugal, a casinhola ou pequena construção qualquer no fundo do quintal é uma edícula. E mansarda, em qualquer país, é a janela que ressalta do telhado. O que acontece é que, em Paris, algumas pessoas se referem ao sótão como um todo, com suas janelas ressaltadas no telhado, coisa muito comum nos prédios antigos de lá, como mansarda. Aliás, até o começo do século 20, elas costumavam servir de alojamento e moradia para empregados e serviçais, porque, sem o tratamento térmico adequado, costumam ser muito quentes no verão e muito frias no inverno. Com a liberalização dos costumes, artistas, hippies e boêmios em geral passaram a habitar estas ditas mansardas. O Fulanô deve ter morado numa que lhe evoca boas lembranças e que, por acaso, deveria ter um jeitão interno semelhante à edícula da sua casa em (aqui citei a cidadezinha onde elas moraram).

Derradeira entreolhada com as sobrancelhas quase encostando na raiz dos cabelos, empinando ainda mais os narizes de costume já bem empinados, uma rápida confabulação cochichada, e elas se foram sem mais conversa.

Devem ter ido consultar dicionários, enciclopédias e amigos um pouco mais esclarecidos e menos arrogantes. Porque alguns dias depois, voltaram um pouco mais humildes -- mas não muito -- e, enterrando definitivamente mansardas e edículas, me encomendaram pura e simplesmente uma casinhola no fundo do quintal.

Aí começou o outro calvário -- o da negociação dos honorários profissionais. E olha que eu nem era careira, ao contrário, e nem cobrei -- o que teria sido muito justo -- pelo adicional de insalubridade mental e espiritual...

A falta de cultura arquitetônica e climática ainda se perdoa, até porque há muito arquiteto por aí que ignora ambas as coisas solenemente. Mas essa subserviência voluntária, cega e arrogante à colonização cultural é de lascar!

Dá pra aguentar?

Pobre da nossa amiga que ainda tem que aturar tudo isso e mais um pouco.

* Bay-window é aquela ampla janela com três faces, uma ressaltada e paralela à fachada, ladeada por duas inclinadas, formando como uma metade longitudinal de um hexágono, de modo a recolher todo o sol e luminosidade possíveis durante os rigorosos invernos europeus.