MEU PAI
Diz que escrever sobre emoções é catarse certa. Não sei...
Não sei, não é a intenção e também não importa muito. Hoje vou escrever sobre meu pai, falecido há mais de 3 anos. Não creio que seja inspiração ditada pela data dedicada aos mortos. Talvez inspirada pela vida, talvez em razão do natal que se aproxima. Não há como negar que este clima que antecede as festas mexe com minha emoção e com minhas bem guardadas lembranças.
A um olhar superficial, às vezes até de minha própria família, sou um ser humano frio, racional, talvez até ingrato, pois não vou ao cemitério levar flores. Não dou importância a datas, não sou de grandes lamentações no dia dos pais, nem em outras datas como dia de finados, aniversário de nascimento e morte. Também não passo mal no natal, mas é uma das épocas em que sinto muita, muita saudade, muita...
Sou muito parecida com ele, fisicamente também sou a que mais traços herdou, mas nossa semelhança e afinidades foram muito além da herança genética.
Ele não era um ser humano perfeito e exemplar, tinha seus defeitos e suas fragilidades, algumas me marcaram um pouco. Eu também não fui uma filha exemplar e perfeita, muitas vezes senti raiva e briguei com ele, mas em momento algum deixamos de nos falar e nada disso impediu que o amor fosse intenso, verdadeiro e recíproco, acho que até favoreceu.
Às vezes os papéis se invertiam, eu rígida e atrevida, "passava os arreios" nele, que não se dobrava a ninguém, além de mim.
Dele herdei muitas coisas, alguns defeitos que eu considero questionáveis, outros defeitos sem sombra de dúvidas e também qualidades.
Jocosa, minha mãe com frequência diz: tu não é uma filha da mãe!
A cada dia estou mais parecida com o meu velho João.
Ele não tinha papas na língua, meias verdades eram meras mentiras, nunca foi falso moralista, jamais diria algo de bom sobre alguém só por já ter partido.
Eu também não tapo o sol com a peneira, ele tinha defeitos,sim. Como eu e como todo o mundo. Ateu por convicção, portava-se como cristão e essa era uma de nossas "brigas" favoritas.
Era um leitor assíduo e com ele incorporei o hábito da leitura. Nos primeiros meses de escola, enquanto pensavam que eu pegava as Seleções do Reader’s Digest apenas para imitá-lo, fui exercitando as lições recebidas e surpreendi a todos completamente alfabetizada antes da metade do primeiro ano letivo. E foi imediata a paixão pela leitura. Isso promoveu uma extraordinária aproximação. Desde então começamos a partilhar livros, devoramos Seleções e todos os outros possíveis. Juntos, lemos grandes obras e grandes bobagens. Entre eles, os livrinhos de bolso das aventuras de Brigitte Montfort, os livros do Dalai Lama, revistinhas do Walt Disney, Karl Marx, Machado de Assis, Ernest Hemingway, Jorge Amado, Agatha Christie, Mario Puzo e tudo o que caísse em nossas mãos. Ele nunca se preocupou com minha pouca idade, preocupava-se em averiguar se eu entendia o que estava lendo. A regra era: eu poderia ler tudo o que tivesse capacidade de entender.
Eu também fui companheira de pescarias e caçadas. Nem era boa companhia, pois era tão pequena que atrapalhava por inspirar cuidados, mas não foram poucas vezes em que acampamos no mato e navegamos, só nós dois, pela imensidão da Lagoa Mirim, no Uruguai.
Confesso que eu não gostava muito desses programas, eu o acompanhava por medo de que ele não voltasse mais.
Eu nunca entendi o medo que sentia. Hoje, em outra perspectiva, justifica-se pelo fato de que numa dessas pescarias de fim de semana, ele e os companheiros naufragaram durante uma tempestade e perderam-se.
A última esperança acabou quando meus avós mandaram aqueles aviõezinhos teco-teco sobrevoar a área, que era bem distante, e não foram localizados.
Eles só puderam voltar cerca de 10 dias depois do previsto, quando todos os julgavam mortos.
Sei, ouvi repetidas vezes, que foram dias terríveis, a incerteza da morte é mais dolorosa que a própria morte. Não tenho lembranças nítidas desses dias, eu era muito pequena, mas tive sequelas. Eu sentia medo, muito medo de perdê-lo. Quando não me permitia ir, eu contava estrelas na varanda, perdia o sono esperando ele voltar.
Ele foi um homem educado e razoavelmente inteligente, mas essas qualidades eram mais evidentes nos momentos de ira, nos momentos de pressão psicológica. Quanto mais furioso, mais rápido raciocinava e expressava-se no seu melhor português, impiedoso e certeiro, sem alterar o tom de voz ou proferir um palavrão sequer. Era uma chicotada verbal dolorosa e, pelo menos eu, não tenho lembrança de tê-las recebido sem merecer.
Humano, procurava ser justo, mas não acertava sempre.
Por outro lado, era doce, sensível, emocionava-se com os netos e com as conquistas das filhas.
Tenho absoluta certeza que esta minha experiência no RL, para ele, seria uma grande festa... Ele curtiria letrinha por letrinha, opinaria, incentivaria, puxaria orelha se necessário e aplaudiria com entusiasmo cada pequena conquista.
Sempre foi um liberal, o que me protegeu do perfil cheio de boas intenções, mas implacável e ainda rígido, de minha mãe.
Depois de adulta, todas as vezes que precisei de apoio, mesmo que num primeiro momento ele não entendesse ou concordasse, parava, pensava e dizia: "tô contigo e não abro, manda bala, o pai assina em baixo". Não era apoio financeiro que oferecia, nem teria condições, era bem mais... Era apoio incondicional, era a certeza de não chorar as derrotas ou cantar as vitórias sozinha.
Tem como não ter saudades de um cara desses? É indo ao cemitério, que ele detestava ir e não ia, que posso homenageá-lo? Recuso-me a acreditar nisso.
Como eu e ao contrário de minha mãe, que diz que se fosse possível dormiria um mês inteiro e só acordaria depois das festas, ele adorava esse clima natalino...
Foi meu grande parceiro, inclusive na cozinha. Na véspera de natal, como eu morava distante e sempre chegava em cima da hora, com mil coisas para providenciar, ele encarregava-se de assar o peru. E juntos, numa parceria perfeita do ponto de vista dele, já que eu preparava mil coisas e ele só provava, bisbilhotava e palpitava alegremente, fazíamos mesas natalinas sensacionais, fartas, bonitas e de qualidade.
Apesar de pobre, nasceu numa família outrora rica e era um bom gourmet. Sabia o que era bom, sabia comer, beber e viver bem. Apreciava uma mesa bem posta e era elegante e hábil com os talheres. Isto era hilário até... Quem não convivia, achava tratar-se de "frescura", cerimônia e os anfitriões sempre insistiam para que ficasse à vontade. Ele já estava, era sempre impecável, tanto no mais requintado ambiente, como na simplicidade do galpão.
Embora não sobrasse dinheiro, não relutava em enfiar a mão no bolso e gastar os últimos tostões para proporcionar boas festas pra todos, aproveitava o momento, vivia o hoje. Era partidário do amanhã depois a gente vê... Às vezes, não era bom de ver, não. Sempre superamos.
Ao contrário do que parece, eu não esqueci, eu penso muito nele. Às vezes, entusiasmada com alguma coisa ou diante de algum fato, chego a esquecer a ausência e o primeiro pensamento é contar a ele. Outras vezes, posso imaginá-lo debruçado numa nuvem, espiando cá pra baixo e divertindo-se quando se realizam as suas "profecias"...
Nem sempre concordávamos, mas depois de adulta, discordávamos em grande estilo. Acho que era uma saudável e divertida disputa, cada um queria ter mais razões, enxergar mais longe e convencer o outro. Isso não significava desentendimentos, que também não faltaram em outras ocasiões, em períodos em que bebeu demais. Esses tempos difíceis eu lamento, entendo e não tenho mágoas. Foram períodos, não foram agradáveis, nem fáceis. Sei que sem passar por eles, eu não seria como sou, as dificuldades ajudam a crescer.
Em dezembro de 2005, doente já há quase 10 anos e principalmente muito deprimido, parecia ter desistido da luta. Então, sugeri mudar a rotina das festas na tentativa de alegrá-lo. Ele concordou e prometeu-me que passaria o natal em minha casa.
Pressenti que chegava ao fim, sabia que seria nosso último natal juntos... E mesmo vivendo o caos financeiro comum a longas doenças e outras perdas, numa linguagem mais usual e clara: sem um puto tostão no bolso, fiz um natal de sonhos em todos os sentidos.
Lurdes e Sônia, duas amigas queridas, irmãs de coração, juntaram-se a mim nessa intenção. Elas patrocinaram as despesas e eu arquei com a bagunça em casa e com o trabalho, melhor dizendo, com o prazer de preparar a ceia e a decoração mais caprichada e linda do que nunca.
Foi o natal mais abençoado de todos, três famílias juntas na alegria e na solidariedade. Não foi triste, foi muito feliz.
Meu pai parecia querer voltar a viver, estava tão feliz e animado, que julguei estar enganada.
Não estava... Em abril ele partiu.
Não chorei, não consegui. Não escondi, senti um alivio muito grande por ele e também por mim, que não aguentava mais ver e viver aquilo.
Para mim, que sempre tive medo de perdê-lo, agora era chegada a hora e até preferi navegar sozinha... Estranhamente não chorei, eu o imaginei saudável e livre, partindo no nosso barco, singrando a Mirim até o infinito... Desta vez, sozinho e para sempre.
Não chorei. Choro hoje, sozinha, enquanto escrevo.
E talvez vá dar uma choradinha na manhã de véspera do natal, sozinha, quando acordar para preparar a quarta ceia sem ele.
Também, ao contrário do que pode parecer, não estou triste. São poucas e felizes as lágrimas que confirmam o quanto uma saudade pode ser boa e que também confirmam que sou filha do pai, indubitavelmente filha do João, cada vez mais parecida com ele, que nunca foi dado a hipocrisias e a melodramas póstumos.
Não se iludam, essas palavras não chegarão ao destino, ninguém vai ler e continuarei a ser a insensível, que não vai ao cemitério.
E, assim, sozinha vou navegando em muito boa companhia... A minha.
Diz que escrever sobre emoções é catarse certa. Não sei...
Não sei, não é a intenção e também não importa muito. Hoje vou escrever sobre meu pai, falecido há mais de 3 anos. Não creio que seja inspiração ditada pela data dedicada aos mortos. Talvez inspirada pela vida, talvez em razão do natal que se aproxima. Não há como negar que este clima que antecede as festas mexe com minha emoção e com minhas bem guardadas lembranças.
A um olhar superficial, às vezes até de minha própria família, sou um ser humano frio, racional, talvez até ingrato, pois não vou ao cemitério levar flores. Não dou importância a datas, não sou de grandes lamentações no dia dos pais, nem em outras datas como dia de finados, aniversário de nascimento e morte. Também não passo mal no natal, mas é uma das épocas em que sinto muita, muita saudade, muita...
Sou muito parecida com ele, fisicamente também sou a que mais traços herdou, mas nossa semelhança e afinidades foram muito além da herança genética.
Ele não era um ser humano perfeito e exemplar, tinha seus defeitos e suas fragilidades, algumas me marcaram um pouco. Eu também não fui uma filha exemplar e perfeita, muitas vezes senti raiva e briguei com ele, mas em momento algum deixamos de nos falar e nada disso impediu que o amor fosse intenso, verdadeiro e recíproco, acho que até favoreceu.
Às vezes os papéis se invertiam, eu rígida e atrevida, "passava os arreios" nele, que não se dobrava a ninguém, além de mim.
Dele herdei muitas coisas, alguns defeitos que eu considero questionáveis, outros defeitos sem sombra de dúvidas e também qualidades.
Jocosa, minha mãe com frequência diz: tu não é uma filha da mãe!
A cada dia estou mais parecida com o meu velho João.
Ele não tinha papas na língua, meias verdades eram meras mentiras, nunca foi falso moralista, jamais diria algo de bom sobre alguém só por já ter partido.
Eu também não tapo o sol com a peneira, ele tinha defeitos,sim. Como eu e como todo o mundo. Ateu por convicção, portava-se como cristão e essa era uma de nossas "brigas" favoritas.
Era um leitor assíduo e com ele incorporei o hábito da leitura. Nos primeiros meses de escola, enquanto pensavam que eu pegava as Seleções do Reader’s Digest apenas para imitá-lo, fui exercitando as lições recebidas e surpreendi a todos completamente alfabetizada antes da metade do primeiro ano letivo. E foi imediata a paixão pela leitura. Isso promoveu uma extraordinária aproximação. Desde então começamos a partilhar livros, devoramos Seleções e todos os outros possíveis. Juntos, lemos grandes obras e grandes bobagens. Entre eles, os livrinhos de bolso das aventuras de Brigitte Montfort, os livros do Dalai Lama, revistinhas do Walt Disney, Karl Marx, Machado de Assis, Ernest Hemingway, Jorge Amado, Agatha Christie, Mario Puzo e tudo o que caísse em nossas mãos. Ele nunca se preocupou com minha pouca idade, preocupava-se em averiguar se eu entendia o que estava lendo. A regra era: eu poderia ler tudo o que tivesse capacidade de entender.
Eu também fui companheira de pescarias e caçadas. Nem era boa companhia, pois era tão pequena que atrapalhava por inspirar cuidados, mas não foram poucas vezes em que acampamos no mato e navegamos, só nós dois, pela imensidão da Lagoa Mirim, no Uruguai.
Confesso que eu não gostava muito desses programas, eu o acompanhava por medo de que ele não voltasse mais.
Eu nunca entendi o medo que sentia. Hoje, em outra perspectiva, justifica-se pelo fato de que numa dessas pescarias de fim de semana, ele e os companheiros naufragaram durante uma tempestade e perderam-se.
A última esperança acabou quando meus avós mandaram aqueles aviõezinhos teco-teco sobrevoar a área, que era bem distante, e não foram localizados.
Eles só puderam voltar cerca de 10 dias depois do previsto, quando todos os julgavam mortos.
Sei, ouvi repetidas vezes, que foram dias terríveis, a incerteza da morte é mais dolorosa que a própria morte. Não tenho lembranças nítidas desses dias, eu era muito pequena, mas tive sequelas. Eu sentia medo, muito medo de perdê-lo. Quando não me permitia ir, eu contava estrelas na varanda, perdia o sono esperando ele voltar.
Ele foi um homem educado e razoavelmente inteligente, mas essas qualidades eram mais evidentes nos momentos de ira, nos momentos de pressão psicológica. Quanto mais furioso, mais rápido raciocinava e expressava-se no seu melhor português, impiedoso e certeiro, sem alterar o tom de voz ou proferir um palavrão sequer. Era uma chicotada verbal dolorosa e, pelo menos eu, não tenho lembrança de tê-las recebido sem merecer.
Humano, procurava ser justo, mas não acertava sempre.
Por outro lado, era doce, sensível, emocionava-se com os netos e com as conquistas das filhas.
Tenho absoluta certeza que esta minha experiência no RL, para ele, seria uma grande festa... Ele curtiria letrinha por letrinha, opinaria, incentivaria, puxaria orelha se necessário e aplaudiria com entusiasmo cada pequena conquista.
Sempre foi um liberal, o que me protegeu do perfil cheio de boas intenções, mas implacável e ainda rígido, de minha mãe.
Depois de adulta, todas as vezes que precisei de apoio, mesmo que num primeiro momento ele não entendesse ou concordasse, parava, pensava e dizia: "tô contigo e não abro, manda bala, o pai assina em baixo". Não era apoio financeiro que oferecia, nem teria condições, era bem mais... Era apoio incondicional, era a certeza de não chorar as derrotas ou cantar as vitórias sozinha.
Tem como não ter saudades de um cara desses? É indo ao cemitério, que ele detestava ir e não ia, que posso homenageá-lo? Recuso-me a acreditar nisso.
Como eu e ao contrário de minha mãe, que diz que se fosse possível dormiria um mês inteiro e só acordaria depois das festas, ele adorava esse clima natalino...
Foi meu grande parceiro, inclusive na cozinha. Na véspera de natal, como eu morava distante e sempre chegava em cima da hora, com mil coisas para providenciar, ele encarregava-se de assar o peru. E juntos, numa parceria perfeita do ponto de vista dele, já que eu preparava mil coisas e ele só provava, bisbilhotava e palpitava alegremente, fazíamos mesas natalinas sensacionais, fartas, bonitas e de qualidade.
Apesar de pobre, nasceu numa família outrora rica e era um bom gourmet. Sabia o que era bom, sabia comer, beber e viver bem. Apreciava uma mesa bem posta e era elegante e hábil com os talheres. Isto era hilário até... Quem não convivia, achava tratar-se de "frescura", cerimônia e os anfitriões sempre insistiam para que ficasse à vontade. Ele já estava, era sempre impecável, tanto no mais requintado ambiente, como na simplicidade do galpão.
Embora não sobrasse dinheiro, não relutava em enfiar a mão no bolso e gastar os últimos tostões para proporcionar boas festas pra todos, aproveitava o momento, vivia o hoje. Era partidário do amanhã depois a gente vê... Às vezes, não era bom de ver, não. Sempre superamos.
Ao contrário do que parece, eu não esqueci, eu penso muito nele. Às vezes, entusiasmada com alguma coisa ou diante de algum fato, chego a esquecer a ausência e o primeiro pensamento é contar a ele. Outras vezes, posso imaginá-lo debruçado numa nuvem, espiando cá pra baixo e divertindo-se quando se realizam as suas "profecias"...
Nem sempre concordávamos, mas depois de adulta, discordávamos em grande estilo. Acho que era uma saudável e divertida disputa, cada um queria ter mais razões, enxergar mais longe e convencer o outro. Isso não significava desentendimentos, que também não faltaram em outras ocasiões, em períodos em que bebeu demais. Esses tempos difíceis eu lamento, entendo e não tenho mágoas. Foram períodos, não foram agradáveis, nem fáceis. Sei que sem passar por eles, eu não seria como sou, as dificuldades ajudam a crescer.
Em dezembro de 2005, doente já há quase 10 anos e principalmente muito deprimido, parecia ter desistido da luta. Então, sugeri mudar a rotina das festas na tentativa de alegrá-lo. Ele concordou e prometeu-me que passaria o natal em minha casa.
Pressenti que chegava ao fim, sabia que seria nosso último natal juntos... E mesmo vivendo o caos financeiro comum a longas doenças e outras perdas, numa linguagem mais usual e clara: sem um puto tostão no bolso, fiz um natal de sonhos em todos os sentidos.
Lurdes e Sônia, duas amigas queridas, irmãs de coração, juntaram-se a mim nessa intenção. Elas patrocinaram as despesas e eu arquei com a bagunça em casa e com o trabalho, melhor dizendo, com o prazer de preparar a ceia e a decoração mais caprichada e linda do que nunca.
Foi o natal mais abençoado de todos, três famílias juntas na alegria e na solidariedade. Não foi triste, foi muito feliz.
Meu pai parecia querer voltar a viver, estava tão feliz e animado, que julguei estar enganada.
Não estava... Em abril ele partiu.
Não chorei, não consegui. Não escondi, senti um alivio muito grande por ele e também por mim, que não aguentava mais ver e viver aquilo.
Para mim, que sempre tive medo de perdê-lo, agora era chegada a hora e até preferi navegar sozinha... Estranhamente não chorei, eu o imaginei saudável e livre, partindo no nosso barco, singrando a Mirim até o infinito... Desta vez, sozinho e para sempre.
Não chorei. Choro hoje, sozinha, enquanto escrevo.
E talvez vá dar uma choradinha na manhã de véspera do natal, sozinha, quando acordar para preparar a quarta ceia sem ele.
Também, ao contrário do que pode parecer, não estou triste. São poucas e felizes as lágrimas que confirmam o quanto uma saudade pode ser boa e que também confirmam que sou filha do pai, indubitavelmente filha do João, cada vez mais parecida com ele, que nunca foi dado a hipocrisias e a melodramas póstumos.
Não se iludam, essas palavras não chegarão ao destino, ninguém vai ler e continuarei a ser a insensível, que não vai ao cemitério.
E, assim, sozinha vou navegando em muito boa companhia... A minha.