ENTRE A CRUZ E A CALDEIRINHA
Tania Orsi Vargas
- Ação Literária entre Amigos -
Aonde a onda estoura, em que praia se arrebenta e como a onda que vem desse mar de desigualdade social estremece ruidosamente nos costados dessa multidão de gente, no desamparo por uma pobreza institucionalizada?
As portas se fecham literalmente e sem distinção para todos que ficam à mercê dos "atalhos" que se desenham como uma rede sob a aparente legalidade e igualdade de direitos neste país. Neste cenário, a saúde e a educação despontam como os pontos mais gritantemente atingidos. E coincidentemente, os mais comentados nas campanhas políticas na mesma ladainha vazia dos discursos pré- eleitorais. Pois essas duas praias são aquelas aonde as ondas batem com maior violência, abatendo multidões neste nosso imenso "litoral".
E existe uma tal "sensibilidade" viva e atenta a qualquer discurso em defesa de quem nada possui, que, para muitas pessoas, e não falo somente da chamada classe privilegiada, qualquer alusão mais direta ao tema, soa logo como um posicionamento ideológico da chamada esquerda. Porque neste país existe por trás de toda a gritaria contra corrupção nos últimos tempos, um alvo bem definido que é todo aquele que resolver atrapalhar as facilidades de um sistema excludente aonde a chamada democracia está ligada principalmente aos interesses de uma oligarquia para a qual o grande contingente de miseráveis que, sem dúvida só são lembrados na hora da repressão, como caso de polícia, não passa de simples estatística. E os meios de comunicação sensacionalistas que vivem desta carniça prestam um serviço no sentido de mostrar a ação "dos bandidos", o que coloca a população, e não só aqueles que vivem nos condomínios de luxo, mas todos aqueles que desejam a qualquer custo se sentir incluídos, numa espécie de guerra declarada aos ditos "marginais". Mas na verdade, ao contrário do que aparece como manchetes aonde se dedicam semanas a um fato que fez uma vítima por sequestro ou morte violenta na mão desses bandidos, quem mais é atingido são as populações carentes, é só ver em estatísticas o número de jovens que morrem diariamente vitimados por guerras do tráfico, uso de drogas e prostituição. Mas a imprensa formadora de opinião se encarrega de sugerir que este lixo social não conta, até porque tais histórias não comovem as pessoas que só querem esquecer que boiamos sobre um mar de desajustes na sociedade brasileira. Surge aí uma deturpação da idéia de direitos iguais, quando se fala em direitos humanos de um lado e "direitos dos bandidos" de outro. Entretanto sabe-se muito bem que o grande contingente de pessoas nos presídios é composto por aqueles que cometeram pequenos delitos e aqueles que ficaram ao desamparo social. "Outra deturpação é evidente nos meios de maior nível de instrução (meio acadêmico, mas também de políticos e empresários), e refere-se à crença de que direitos humanos se reduzem essencialmente às liberdades individuais como direitos civis e direito à propriedade, e, portanto, não se consideram como direitos fundamentais , aqueles vinculados ao mundo do trabalho, à educação, à saúde, à moradia, à previdência e seguridade social." E se são destinados recursos para amenizar mesmo que palhativamente tais mazelas, coisa que em todos os países desenvolvidos acontece, logicamente em outro nível, logo aqui surgem os bordões da piada como a que denomina uma ajuda legítima aos mais carentes como "esmola".
Esta cruzada contra o "mal", visto sempre pelos seus efeitos e não pelas causas, atribui aos bandidos e marginais toda a carga de responsabilidade sobre a chamada violência. Uma falácia que supõe que os dois lados estejam nitidamente separados. Nada mais surreal e fantasioso. Além disso estamos em posição de negativo destaque na distribuição de renda, mesmo comparados a outros países pobres do mundo. E neste salve-se quem puder, todo aquele que consegue deixar para trás uma condição social muito carente deseja por todo custo esquecer esta fase de vida e o que faz é tentar assimilar de forma mais completa, os modos e costumes daqueles que estão mais acima. E é compreensível, mesmo que não aceitável, este individualismo daqueles que já provaram o amargo sabor do anonimato como cidadãos, tal o quadro de desamparo e abandono em que se encontra a maioria da população deste país. E por estas bandas, sob o controle e influência vindas de fora desde há muito, fomos levados à uma cultura do supérfluo, a qual, juntamente com o desmantelamento da educação pública e o monopólio sobre os meios de comuicação, tangeu a boidada como gado manso ao sabor das conveniências de poucas mãos. E a principal consequência disso foi que passamos a perceber o gosto pelo consumo como identificador de "modernidade". Dessa forma, mal o sujeito se firma nas duas pernas e entra na corrente da inclusão, a primeira coisa é buscar a exteriorização do status social. Possuir os bens tidos como indicadores de posição na hierarquia dos chamados cidadãos de bem é a meta de todo aquele que ascende socialmente. Trata então, de logo tentar possuir aquilo que o vai sacramentar como incluído e escapar da pecha de pobre que por aqui vira ofensa e da braba. E de tal forma tal oásis social é desejado e de tal forma a exclusão social é cruel , que um tênis de marca passa a ser, na visão do adolescente muito pobre, o passaporte para uma ilusória sensação de se sentir alguém. E a visão de si mesmo como íncluído vem ainda antes do desejo de ser visto, na qual o acessório presente na embalagem do corpo funciona como uma espécie de "membro resgatado" que o torna "mais igual" àqueles cujo valor não é medido pelas suas ações, mas principalmente pelas aparências. Pois não existe pior estigma do que este que divide as pessoas entre os que têm e os que não têm acesso aos bens de consumo; entre o que pisam nos de baixo pra subir, no desepero de se firmar mais próximos das portas de entrada e entre os que aos milhares tombam muito cedo e vão engrossar os dados da estatística.
Temos pra concluir um dado em números frios e que falam por si. No Brasil, mais de quarenta por cento dos bens e riquezas estão na mão de dez por cento da população.
E aos distintos leitores deixo um pedido: por favor, não me olhem como uma xiita, uma simpatizante das esquerdas, uma divulgadora de ideologia. Eu sou somente uma brasileira que não quer fechar os olhos ao que aí está, que faço muito pouco por meus semelhantes, mas que jamais me perdoarei se não falar a minha verdade, se não disser do que sei e sinto, mesmo podendo estar equivocada.