DIVINO MESTRE
Há quem se ofende com tudo. A falta de atenção ao significado das palavras, as intenções da oração e ao uso das sutilezas do idioma deixa muita gente com o que Vulpino Argento chama de “cara de paisagem”. Então vamos começar por aqui mesmo. Cara de paisagem; o que será isso? Como alguém pode ter uma cara assim? Será uma cara ampla, grandona? Será a cara de quem tem uma expressão panorâmica, em tela grande, do tipo cinemascope?
- “Divino Mestre - responde Vúlpi com cara de sabichão - a cara de paisagem é aquela que a pessoa faz quando entra num salão enorme, por exemplo: boca entre aberta, olhar de espanto, cabeça virando de um lado para outro e os olhos escaneando o teto como se o mais importante de tudo estivesse lá em cima. Também é chamada de cara de paisagem, Meu Divino Mestre, aquela que faz um certo político, um grande amigo meu, por sinal, quando está no palco, ou melhor, no palanque. Preste atenção! Ele tem um sorriso indecifrável entre a gozação, o deslumbramento e a vaidade.”.
É interessante essa observação de Vúlpi, exceto o fato de ele me chamar de Divino Mestre, o que eu detesto. Isso, porém, não me ofende. Entretanto há quem se ofenda por qualquer coisa, principalmente quando não entende o sentido ou o significado. Como a ofensa é uma sensação, e não um sentimento é preciso ter muito cuidado antes de sentir-se ofendido. Mas, como ter cuidado com as sensações? Aí está um bom desafio.
Cara de paisagem pode ser uma ofensa tanto quanto um elogio. Arquibaldo, o Breve, tem cara de paisagem; está sempre alegre, com um olhar contemplativo, às vezes, mas, em geral, sua expressão irradia um amanhecer ensolarado a beira do mar. Que bela paisagem! Dizer que “aquele jantar estava divino” certamente não ofende ninguém nem a religiosidade dos que reservam o dogmático termo, divino, a seres sobre naturais.
A ofensa serve para ser usada, e ela está aí para isso. Quando se está consciente de que não se tem porque ofender-se com a diatribe, nada acontece. Ao contrário, é como chamar o ladrão de gatuno, o cínico de descarado, o bajulador de puxa-saco e eles se reconhecerem e sentirem-se ofendidos; é aí que é preciso ter cuidado, pois ofender-se pode ser uma incomoda revelação de si mesmo. De uma parte escondida do caráter que a ofensa torna visível, uma verdade. Esse é o perigo que corre quem se ofende com qualquer coisa; seja um gesto, uma palavra. Quem toma uma “analogia inversa como semelhança literal”.
Vida a fora somos ofendidos de diversas maneiras, certamente. Entre elas está o insulto, a afronta que ofende culturalmente, que transcende; que nos faz sentir idiotas conscientes da manipulação daquilo que é da lógica e da razão, por aqueles que apregoam mentiras usando metáforas. São delirantes carismáticos que personificam o melhor do ser humano para o encantamento coletivo mas não constroem a base segura e sustentável do desenvolvimento que merecemos.
Na ficção, a realidade é outra, se é que se pode dizer assim. Por isso quando Vulpino Argento, o Demente, um personagem, me chama de Divino Mestre, não estou ofendendo ninguém, nem há porque alguém sentir-se ofendido. Se não, é como acreditar que a cadela Baleia tenha realmente sofrido nas mãos, melhor: no texto, de Graciliano Ramos, ou que Sancho Pança tenha sido ofendido por Cervantes que o define como “homem de bem, mas de pouco sal na moleirinha”.
Uma boa ofensa, entretanto, não deve ser necessariamente um insulto. Pode ser a constatação de uma realidade, de um tempo que passou e perdeu-se sem sentido; sem que nem pra que. Como o que ouviu um certo homem velho um jovem homem dizer: “como pode a geração de vocês ter vivido sem telefones celulares, sem satélites, sem internet, sem TV digital? Sem esse sistema bancário informatizado, sem cartões de crédito, de débito e transferências automáticas? Sem aviões voando mil quilômetros por hora, sem GPS, sem carros flex, sem deliverys pra tudo, sem vacinas contra a gripe? Não sei como conseguiram viver, homens velhos, sem essas maravilhas as quais nós, os homens jovens podemos desfrutar. Como vocês, homens velhos, puderam viver sem comunicação de dados por fibra ótica, sem telas de cristal líquido, pen drivers, CDs, tecidos que não amarrotam e não queimam,sem kindles com milhares de livros. Como, afinal, vocês, homens velhos, podiam viver sem tudo disso?”
O homem velho ouviu tudo pacientemente, que é uma propriedade exclusiva da longa idade, e, antes que respondesse, ainda ouviu o homem jovem fazer a derradeira pergunta: ”onde vocês estavam, quando eram jovens, o que faziam quando eram jovens, como viviam quando eram jovens?”
Com uma única resposta, disse o homem velho: “estávamos inventando, criando e fazendo tudo isso para vocês”.
O que parecia ser uma ofensa ao homem velho, tornou-se uma resposta sem insulto ao homem jovem.
- “Assim, Meu Divino Mestre - diz Vúlpi, que foi quem me contou essa história - os ofendidos que se retirem; desocupem espaços e fiquem atentos as suas emoções, porque as vezes, ofender-se pode ser uma incomoda revelação de si mesmo”.