Nota de falecimento
Nota de falecimento: Deixou-nos ao meio-dia desta terça-feira, dia 27 de outubro, a TV da sala. Tinha doze anos, viúva da nossa antena antiga, sem filhos, doadora de órgãos, faleceu de causas naturais.
Com ela passamos muitos momentos juntos. Lembro-me do dia que chegou e rapidamente ocupou seu lugar fixo na sala, sendo mais um membro da família, mais uma voz nas decisões. Mostrava-nos os preços mais baratos, aconselhava sobre alimentação saudável, e pedia com gentileza que levássemos ou não o guarda-chuva caso fôssemos sair. Quantas vezes, na hora do jornal, papai sozinho tinha longas discussões com ela, sempre fazendo as pazes depois, quando ela sorrindo mostrava o time do coração dele ganhando. Também sempre era ela que ajudava mamãe ensinando das suas receitas milagrosas para um jantar diferente para nos distrair os gostos.
Ela era tão querida que, quando percebia desavenças entre os irmãos, logo arranjava os capítulos finais da novela para juntar a família toda na sala. E muitas vezes ainda ela nos colocava para dormir, contando alguma história fantástica e então se desligando sozinha para que a luz que brilhasse mais fosse a luz própria dos nossos sonhos.
Vez ou outra ela brincava de sair do ar como quem brinca de fazer falta, mas logo voltava e voltava com tanta saudade que se mostrava por completa, até mesmo ficava nua. Éramos íntimos. Foi para ela e somente para ela que chorei e tantas vezes chorei quando o fim do filme era muito triste. Ela conhecia o que me comovia e o que me enchia a boca de sorriso e conhecia estas coisas de todos nós. Sempre soubemos no fundo que era ela quem nos assistia.
Pela manhã, sabendo que a manhã é a infância do dia, ela nos mostrava desenhos e divertia os olhos de criança que ainda todos carregamos. À tarde, entretinha toda a gente com alguma série longa ou uma brincadeira jovem e cheia de vida. À noite, trazia temas adultos, e na alta madrugada passava os filmes que nunca queríamos que acabassem. Ao meio-dia, era a vez do jornal em que passavam as tristezas faladas, os acidentes de carro e as notas de falecimento. E a nota dela própria, coitada, ela não conseguiu mostrar, mas nós vimos ao vivo ela morta, indo para o paraíso das televisões e lá, com certeza, ela irá se encontrar com a nossa velha antena por quem era apaixonada e conversarão eternamente e para sempre o diálogo das imagens. Pena que o céu não passe em nenhum canal.
Descanse em paz, Philips Smart.
Adrian Lincoln, seu fiel telespectador.