A INFÂNCIA É TATUAGEM DEFINITIVA

– para Clair Rosa, amiga de infância, hoje preciosa leitora.

Os bons tempos, os largados dias da infância e da adolescência – cada vez mais me apercebo disto – têm fundamental importância na vida da gente. É daí que mergulhamos para a dureza dos dias. Para o enfrentamento dos desafios longe do colo materno e do braço amigo do pai.

Imagina o que têm a relatar os que se criam sob o império do crack, das drogas em geral, tendo a violência como vizinha de porta, que, sem ser convidada, irrompe dentro de casa, faz vítimas e danos irreparáveis ao corpo e à mente. Como resistir aos dias subseqüentes, tendo este espiritual como memória dos primeiros dias da vida de relação?

Não quis te avisar sobre a criação da croniqueta “ROUPAGENS ADOLESCENTES”, publicada no Recanto das Letras, em http://recantodasletras.uol.com.br/cronicas/1888113, visto

que eu acabara de a enviar para o Diário da Manhã. Imaginei que terias conhecimento dela através da publicação impressa. Não me dera conta de que és assídua em minhas páginas eletrônicas.

Queria te fazer uma surpresa... Aventei que toda a nossa história pessoal (como meninos e meninas daquele tempo) se encaixaria com a historieta quase autobiográfica. No texto referido acima, a veracidade está em cada palavra, com muito pouco de criação fantasiosa, a não ser a compreensível tentativa de despersonalização, visando esconder o narrador, sob o risco de me tornar um escriba confessional, com foco em si próprio.

Não tenho vocação para o memorialismo. E nem tenho história pessoal que pudesse vir a interessar aos leitores. Memórias é pra quem tem vontade de ser herói, que anseia por não vir a ser esquecido, e não pra quem busca o ostracismo.

Escrever, pra mim, é necessidade. Em mim as historietas transbordam como a água num copo, acaso não se desligue a torneira. Eu apenas junto o que fica pululando em torno. E me delicio com o gosto delas. Mas é o antigo, o quase desmemoriado, o que mais fascina. O recente está aqui, aos nossos olhos, ainda não sentou a poeira dos acontecimentos, e não me atrai.

Acho que não saberia falar sobre nós sem os caranguejos, rãs e girinos do Arroio Pepino. Sem o catar das tampinhas premiadas nos fundos da fábrica da Pepsi Cola, sob a ameaça dos cortes nos pés que os vidros das garrafas quebradas nos faziam, e o “corridão” que os guardas de segurança nos davam. Também as incursões nos brejos de areia movediça com os resíduos de soda cáustica no terreno da fábrica de sabão Lang. Uma vez mergulhei naquele caldo fedorento até o pescoço, e por pouco não me afoguei...

Também não saberia falar da infância sem o espetáculo inusitado das enchentes que traziam improvisadas canoas e os botes dos pescadores às janelas das casinhas ribeirinhas. Naqueles desgarrados invernos nascia um rio nos campos de defronte e nas margens pra onde transbordava a enxurrada do arroio totalmente fora do leito original.

E se tinha um medo enorme das cruzeiras e das jararacas, que decerto haviam nascido junto com o rio que se formara repentinamente. E eu tinha vontade de que os barquinhos entrassem pelas aberturas pra passear dentro de minha casa. E se ficava rezando, sempre à janela, pra que isto viesse a acontecer. Com o nariz colado no vidro, os olhos observando tudo, e a cabeça recriando as novidades.

De repente, no meio de todo aquele inusitado de águas, pipocavam no céu os balões de junho. E eu sentia saudade dos pirilampos de verão, do gritinho das cigarras e o cricri dos grilos.

Ainda hoje sonho com as fogueiras, foguetes, busca-pés, bombas, traques e o medo das labaredas de São João e São Pedro. Do dia de Santo Antonio, com as brincadeiras "de arranjar namorada", colocando os barquinhos coloridos dentro d’água, na bacia marcada com os nomes das gurias que povoavam a imaginação noturna, e davam comichão no meio das pernas.

Nos sonhos elas sempre apareciam enroupadas, o que era o maior desafio... Quando muito, caía a alça do sutiã naqueles escaldantes dias de folguedos e estripulias. E as blusas eram tão justas no pescoço...

Os cochichos e fantasias morriam entre os sapecas, no quartinho, pernas e braços entreverados nos colchões espalhados no chão. Quem mais sofria era o travesseiro...

– Do livro O HÁLITO DAS PALAVRAS, 2008/2009.

http://recantodasletras.uol.com.br/cronicas/1890862