A solidão de um menino [lembranças]

Algumas vezes eu me sinto solitária, mesmo estando rodeada de pessoas. Não me incomodo tanto, sinto um leve desconforto, mas antes que possa reclamar imediatamente me vem a lembrança do "menino misterioso do parquinho".

Eu estava na pré-escola. Guardo ainda muitas memórias daquela época. Esse menino, em especial, chamou minha atenção por causa de seu "ar diferente"... Era algo que eu não sabia explicar, apenas sentia. Era como se ele fosse muito mais velho que a gente, embora parecesse criança. E o estranho é que não me lembro dele na "sala de aula", só quando era recreio e íamos brincar no parquinho que eu reparava em sua presença misteriosa.

Talvez pelo fato que ele vivia de castigo, ou melhor, fugindo dele... Naquela época, "castigo" significava ficar sentado no murinho, de costas pro parquinho, olhando a quadra vazia, até a professora liberar. Teoricamente, pensando na besteira que fez. Na prática, bem...acho que eu era a única criança que REALMENTE pensava na vida, meus amiguinhos ficavam cantando ou lembrando do último episódio da "Caverna do Dragão". Ou no caso desse menino, divertia-se em bolar a próxima estratégia de "fuga".

Aquele cantinho era apelidado de "Castigo", pois só quem estava de castigo tinha o "direito" de ficar naquela área cimentada.

Às vezes eu aparecia lá para conversar com o menino, mas a professora me expulsava do "Castigo". O que era uma idéia engraçada: se eu sou expulsa do "Castigo" eu vou ficar de castigo? E daí vou ter que ir pro "Castigo"... Então por que me expulsar de lá, pra começo de conversa?

Um dia, eu estava brincando com as outras crianças, num misto de pega-pega com esconde-esconde, e ele apareceu no parquinho, furtivo. Eu fiquei feliz em vê-lo, e o chamei para brincar com a gente; mas meus coleguinhas não ficaram contentes. Um deles perguntou ao menino:

- E seu castigo?

- Eu já saí - o menino respondeu.

- A "tia" tirou você do castigo? - insistiu o outro.

- A "tia" saiu do parquinho e eu me tirei do castigo. É só ela não me ver por aqui...

Eu ria, achava isso o máximo. Meus coleguinhas, defensores das regras e da "tia", fizeram careta e disseram que não queriam mais brincar. Eu não entendi, e quando perguntei o porquê disso, as respostas eram unânimes:

- Não gosto dele.

E iam brincar em outra parte do parquinho.

O menino, sem demonstrar tristeza, disse:

- Você quer ir com eles, né? Pode ir lá. É sempre assim. Mesmo quando eu não estou de castigo, ninguém quer brincar comigo. Vai lá fazer o que você quiser.

- Do que vamos brincar?

- Você nem ouviu o que eu falei...

- Ouvi sim. Você disse pra eu fazer o que eu quiser. Por isso estou chamando: vamos brincar.

- Eu e você?

- Eu, você e quem mais quiser.

- Eles não vão querer. Ninguém gosta de brincar comigo.

- Que pena... Acho que vai ser só a gente, então.

- Tem certeza que quer brincar comigo?

- Claro! Você disse que trouxe um joguinho novo, eu queria brincar daquilo! Mas tá lá na sala, né?

Ele finalmente sorriu.

- Se chama "xadrez chinês". Espera aí que eu vou lá buscar.

Ah, essa era outra coisa proibida: quando era recreio, a gente era obrigada a ir pro parquinho e não podia voltar pra sala antes da professora mandar.

Mas o menino não se importava com as regras. Ele era uma criança rebelde. E eu achando aquilo o máximo. Eu sinceramente achava ele legal, mesmo que ninguém mais concordasse.

O menino me ensinou a jogar o que ele chamava de "xadrez chinês", que pra mim parecia um jogo de damas. Depois que cresci e descobri o que é um "xadrez chinês", vi que não era nada parecido com o que ele me ensinou... Mas isso não me importa, eu estava me divertindo.

Nisso a professora nos viu, e me bronqueou:

- você não pode brincar com ele.

- Por que não? - perguntei.

- Por que ele tá de castigo.

- E daí?

- Daí que se ele tá de castigo ele não pode brincar.

- E ele vai ficar sozinho?

- Vai, ficar pensando na besteira que fez.

- Então eu quero ficar de castigo.

A professora levou um susto com a minha idéia "genial".

- Por quê?

- Porque aí a "tia" me manda ficar sentada quietinha de castigo do lado dele, aí eu posso brincar com ele.

- Nada disso, se você ficar de castigo vocês não poderão ficar brincando. Não é melhor esperar ele sair do castigo?

- Mas ele nunca sai do castigo.

- Vai brincar - finalmente a professora se cansou e foi olhar as outras crianças.

Eu continuei ali. O menino ficara o tempo todo quieto, cabeça baixa, só remexendo as peças, ouvindo eu discutir com a professora. Depois que ela saiu, ele me falou, um pouco perturbado:

- Vai lá brincar.

- Mas eu tou brincando.

- Me deixa sozinho. Vai brincar no parquinho.

Eu fiquei em choque. Meus seis anos não me permitiam entender. Levantei bufando, triste por estar sendo expulsa assim, mas não consegui reclamar. Antes de eu pular no parquinho, porém, ele me chamou pelo nome.

- Obrigado -, ele disse.

- Pelo quê?

O menino não conseguiu explicar. A única coisa que respondeu foi:

- Não quero que você fique de castigo.

Eu não consegui entender na hora. Apenas chorei. Naquela época eu chorava muito por pouco, mas mesmo se não fosse chorona acho que seria impossível manter-me impassível. Eu sentia a solidão dele, o "ser rejeitado" por todos, e a gratidão por eu tratá-lo como um amigo. Os sentimentos dele passavam pra mim, mas era como um sonho, como uma coisa alheia, que eu não conseguia compreender. Só anos mais tarde fui entender o que é dor da solidão, e entendi o que aquele menino deveria sentir.

Não sei o paradeiro desse menino. Já não sabia muito, na época. Talvez fosse filho único, talvez os pais fossem ausentes, talvez ele vivesse mudando de escola e por isso ele não firmava amizade. Era o que ouvi falar, mas nunca tive certeza. A única coisa que eu sabia de fato era seu nome, e que ficou pouco tempo com nós, menos de um semestre. Mesmo assim, ele me marcou. Quando eu penso em reclamar de solidão, lembro-me desse menino, e fico imaginando que, se dói pra mim, que já sou crescida, quanto deveria doer pra ele, apenas uma criança, carregar esse buraco no peito?

Voo do Corvo
Enviado por Voo do Corvo em 27/10/2009
Código do texto: T1890060
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