Os limites do meu corpo violado
Antes era o verão. E a pele chegava ao ponto de parecer uma madeira lustrada com óleo ordinário.
E naquela mesma igreja de influências arquitetônicas obscuras, vi, de longe, Marianne entrar.
Não sei quantas vezes em minha vida, nesta ou na paralela, vi esta mesma cena. Às vezes realidade, às vezes mera forma de eu compor um escrito, pretensamente grandioso. Provavelmente, eu nunca saberei o que de fato ocorreu naquele dia. Mas dada minha infinita capacidade para simular a verdade, dou com a maior honestidade os fatos segundo minha arbitrariedade.
Marianne entrou na igreja, onde tempos atrás eu pedi perdão por uns cinco ou seis pecados de pouca importância. Os cabelos, muito densos, me traziam uma angústia sem fundamentos,e sua pele, extremamente branca, me trazia desejos engraçados.
Seu andar, quase uma marcha, a conduziu para o centro de tudo, o altar, onde deveriam morar santos, anjos e toda a repartição pública celeste. Mas sendo eles de barro, ou de algum material pouco digno, não davem respostas. Pelo contrário. Aumentavam as dúvidas.
E Marianne, mais uma vez, sacou de sua lâmina, para mais uma vez manchar o chão, com a nódoa pegajosa que é o sangue.
Mas dessa vez foi diferente: eu havia entrado na igreja e não sei de que humanidade fui tomado, para impedir que a lâmina tocasse aquele pescoço pulsante.
Nessas horas, alguém deveria chorar, e alguém deveria ajudar, ou ser humano. Mas não é assim que as coisas funcionam aqui. Este é meu mundo de animais mecânicos. Onde todos são tão ordinário e covardes, que se matam três vezes ao dia, para depois se atirarem aos pés de um deus de barro.
Marianne nunca me disse, de fato, por que desejaria morrer. Nem se a morte em si é algo interessante. Mas dia após dias, um pouco mais ou um pouco menos de seu sangue se vai pelo altar da igreja, comigo observando mais de perto ou mais de longe.
Meus relógios, que pairam sobre a cabeça dessa população de anjos e pessoas criadas à partir de mimeógrafos, também não dizem muita coisa. Seu registro do tempo é inútil, pois dia após dia, a morte acontece. E Nem sempre estou com ânimo para impedir.
Muitas vezes preferi ficar em casa, enquanto ela morre, tomando meu café em xícaras de um branco suspeito. Olhando as cortinas que se movem ao vento, enquanto os demônios, em sua infinita paciência, sugerem de maneira docemente constrangida, que eu diga ao mundo o tamanho da minha incompetência. O quão humano eu sou.
Pois digo que amanhã, e não mais que amanhã, não verei Marianne morrer. Vou me despir, e cumpri funções fisiológicas solitárias, até que o corpo destrua minha mente. Vou matar a maior parte daquilo que me faz escrever essas coisas despudoradas. Vou virar um pernilongo. E depois, tocar um quarteto de cordas.
Poesia é assim: um ato de suicídio do bom senso.