ROUPAGENS ADOLESCENTES

O pai era sargento da Brigada (PM) e ganhava pouco. Pagava o terreno recentemente adquirido da Família Milheira, que eram uns portugueses simples e agradáveis, mas muito atentos aos que lhe deviam dinheiro. Também pudera! Tudo o que recebiam provinha da terra, dos pomares de variadas frutas e canteiros de hortaliças. Era desta gleba agricultável que saíra o terreno de Joaquim e Teresa, jovem casal. A cidade crescia para o arrabalde. O loteamento da área nunca foi bem aceito pelo Seu Rodrigo. Parecia que lhe tinham extirpado um braço ou uma perna. Porém, precisava de dinheiro para a sobrevivência de uma numerosa família. De vez em quando a turma batia nos pomares de pêssegos, peras, figos e uvas do Seu Rodrigo, nos fundos de casa, e ele saía à caça dos intrusos com uma espingarda na mão. Talvez quisesse copiar as ações de outro dono de sítio, o “Saleiro”, que morava além do Arroio, e costumava dar tiros de sal grosso na molecada, mas nunca feriu ninguém. Construía alguns espantalhos que mais assustavam os traquinas do que as aves, que se deliciavam com as laranjas e caquis. O jovem sargento miliciano, no intervalo do meio-dia, ficava junto à família durante o programa “Rádio Sequência”, em que pintavam o Pinguinho e o Walter Broda, fazendo todos morrer de rir. Depois se ia para o quartel para cumprir o expediente. Meados dos anos cinqüenta, algum tempo após a morte do Presidente Vargas. Era comum ficar de prontidão no quartel durante longos dias e noites. Havia o temor da eclosão da guerra civil. A mãe, todos os dias, à uma da tarde, escutava a novela radiofonizada, enquanto passava a ferro a roupa de uma menina bem comportada e a de seus cinco tinhosos. Também as peças de dois “lavados” de clientes de posses, o que auxiliava na garantia do sustento. Algumas coisinhas como ralas guloseimas, roupas para ir aos passeios e várias exigências semanais pra "caixinha" da escola pública do bairro. A ordem familiar era estudar até as quatro da tarde. Depois se podia ir brincar no campinho de futebol de defronte, jogar bola, soltar pandorgas ou quicar bolinhas de unha, "às brincas" ou "às ganhas". Nesta última modalidade, invariavelmente terminava o jogo de gude com o perdedor armando rolo com o vencedor. No inverno, algumas partidas do jogo de botão numa velha mesa na casa de Dona Paulina, que tinha filhos da mesma idade. Teresa proseava longamente com a gurizada nessas quase três horas em que “a galinha ficava com os pintos à volta”, enrodilhados na longa e rústica mesa de madeira. Conversava-se sobre as novidades, surgiam alguns fuxicos de fulana e sicrano, comentários sobre a novela e os programas radiofônicos apresentados e alguma interação com o que o locutor estava dizendo naquele momento. A mãe ralhava quando havia balbúrdia ou quando algum dos manos não queria nada com a feitura dos “temas para casa”. Fazia café com bolos fritos, durante os tempos de invernia. Orientava a colheita de uvas nas parreiras de casa, ao tempo do verão. Os poucos pêssegos murchos colhidos no quintal serviam de munição para as “guerrinhas” entre os irmãos, as quais, quase sempre terminavam em contendas físicas, obrigando a mãe a usar o relho de açoitar cavalo. Uma charrete que passara na rua perdera o utensílio. Era a sua temível arma sempre ao alcance da mão. De quando em vez a tropilha ia até lá perto do Armazém Boca do Lobo, nos fundos da casa do Oscar, o qual realizava campeonatos de futebol de mesa. Até as gurias compareciam, para funcionar como torcida. Mas o Oscar não gostava, porque a opção dele, solteirão inveterado, eram os meninos. Quando estavam à mesa de botão, lá vinha ele, por trás, teimando em ensinar o moleque a jogar, e se debruçava sobre as costas do jogador empenhado na partida. Discretamente, havia o empurra-empurra pra se livrar do tarado, já de espada em riste... Dizia-se que ele dava times de botão de “parafina”, que eram os mais caros do mercado, se o jogador, em hora combinada, comparecesse sozinho à sua casa. Furtivamente, uma que outra incursão proibida nos matinhos de arbustos, pra dar uns “peguinhas” no cigarrinho dos mais velhos, uns rebenta-peitos: Hudson, Belmonte, Elmo, até alguns com filtro branco como o EF. De vez em quando pintava um de filtro amarelo. Quase sempre era o tal de Hollywood. Claro, isto só ocorria quando algum moleque juntara alguns “pilas”, a linguagem gaúcha suburbana para os trocos nas algibeiras. Excepcionalmente, ocorriam alguns “amassos” nas meninas, quando se ia colher lírios no brejo que corria em direção ao Arroio, logo após o campinho de futebol. Algum furtivo beijo ocorria quando se colhia malmequeres ou se pegava caranguejos de água doce, que apavoravam as mocinhas, com suas garras ameaçadoras. Entre os carrapichos e arbustos, a descoberta do sexo, com algum espetáculo de masturbação, tão comum entre os meninos. Gabolices machistas e até concursos de jogar o sêmen à distância formavam o proscrito, aquilo absolutamente irrevelável dos que já começavam a ter penugens na cara e no sexo. As luzes da casa eram apagadas muito cedo pra evitar consumo excessivo de energia. Um amigo do pai metido a Dr. Pardal, o cientista louco das revistas de quadrinhos do Walt Disney, trouxe uma “galena”, e a garotada ficou maravilhada. Também disse ao pai que alguns noticiários do rádio falavam num aparelho que levava imagens, notícias e shows de música pra dentro de casa, e que se chamava televisão. TV, para os íntimos da eletrônica. Contou que Pelé, o jogador de bola, começava a brilhar no Santos, lá longe, em São Paulo, e se previa o sucesso com ele no time, para a Copa do Mundo de 1958. Nada mais do que a imaginação povoava o noturno de cansaços e ruídos, quando a invernia rilhava os dentes e rangiam nas janelas os medos de calças curtas. No verão, contavam-se estrelas, sempre com o temor permanente de que nascessem verrugas na ponta dos dedos. No mais, era o tempo das descobertas. Tempo de cumprir. E talvez o de chegar.

– Do livro inédito O HÁLITO DAS PALAVRAS, 2008/11.

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