O surto

Gritos, desespero, uma dor aguda no diafragma, sinto falta de ar, caminho para lá, caminho para cá, coisas ruins na mente, nenhum alento, mais gritos, quero dor, pego uma faca, cabelo desgrenhado, começo a me cortar, sangue escorre, a dor alivia, a falta de ar afrouxa, ligo para amigos, ninguém atende, um carro estaciona, o que ele quer? Me imobilizam, larguem-me, começo a me sacudir, quero me livrar das garras, grito com todas as forças, os vizinhos olham o show gratuito que eu proporciono, bombeiros, ambulância, polícia, aonde que eu fui parar, me levam embora, sem futuro, qual a graça disso tudo, queria ligar a televisão, me jogaram dentro do carro, ouço a sirene ao longe, mas ela está perto, não compreendo, algo pior que logaritmo, achei!

Devaneios de uma mente perturbada, as árvores formam uma paisagem verde, onde estão os pássaros? Está de noite, morcegos são mais freqüentes, mas também não são pássaros, bebem água do riacho, apanhando frutas em árvores, o Papai Noel esse ano não está no helicóptero que sobrevoa o carro, ninguém acena, quero a falácia de um amor materno que nunca existiu comigo, ela se foi cedo, brincar com os bundinhas rosadas, tocar harpa. Instrumentos, nunca fui bom, sem o dom, entende, seria menos frustrante tocar guitarra a flauta, ou bateria a pandeiro, sou rockeiro, não quero rótulo, como enlatado que se escolhe no mercado. Não faço rima, a vida não rima pra mim, privada e vida não rima. O sangue mancha a poltrona do carro, o volante dança freneticamente, muita preocupação comigo, vou pular do carro e dançar até ser atropelado, que cena linda seria, digna de clássico do cinema catástrofe.

No momento só penso em sorvete, colocar nas feridas, sentir arder, é diferente de deixar crescer uma pereba com pus, espreme-la e colocá-la no purê de batatas, almoçarei amanhã? Quero pensar no dia de amanhã, acho que estou sendo repreendido, palavras macabras, revelando meu futuro, negro ou luminoso, Lady Macbeth, faça a sua escolha. Minha cama macia, sinto o cheiro do sabão, limpinha, não quero dormir em nenhuma espelunca. O carro dá uma guinada, desce uma ladeira, estaciona, emergência, sou empurrado e cercado, não posso fugir, me sinto um bandido, muitas pessoas na recepção me olhando agora, virei o centro das atenções, caralho! Abra um buraco no chão e me engula antes que eu fure as vistas, enfrente a Esfinge e coma o cadáver da minha própria mãe, o pai já morreu de desgosto.

A imagem refletida mostra um completo idiota, os que me trouxeram imaginam um completo idiota, sou um idiota solitário agora, estou recobrando as forças, já penso no ridículo disso tudo, quero correr e não posso. Toca campainha, ainda não é a minha vez, perna quebrada, que horror, vai amputar, me salvem de um destino assim, estou sempre pedindo salvação, não sei se tenho, nem sei rezar, se tiver um juízo final eu estou perdido ou salvo, sempre mantive minha opinião descrente, não podem me acusar de virar a casaca. Uma piada de mau gosto contada dez vezes continua sendo uma piada de mau gosto, tudo isso é uma piada, estou no centro do picadeiro, malabaristas, trapezistas e cuspidores de fogo, o extintor está logo ali, tem a cor do meu flagelado braço esquerdo. A sirene toca novamente, toca novamente, mais uma vez, agora sou eu, entro numa sala com duas macas, tem um ferido na outra, a cortina é fechada, privacidade, o médico me manda mostrar a bunda, que indecência, sou invadido por um sentimento de pudor, pergunto qual o nome da medicação, nome científico complicadíssimo, deve ser uma nota o preço final disso, ele saca duas injeções, a tortura é dividida, as duas na mesma banda, a primeira picada dói, a segunda picada dói, soa indecente, mas é minha bunda sendo espetada, não tem nada de legal nisso, muito pelo contrário. Acertam os detalhes enquanto encosto a cabeça no travesseiro e tento relaxar.

Não consigo adormecer, cama é muito dura, me incomoda, viro de lado a todo momento, caio no choro, me alago em lágrimas tardias, colocam a mão na minha cabeça, querem me velar, não quero isso agora, tinha que ter sido antes, o leite derramou, não vigiaram a subida, limpar é mole, água e sabão. Vamos fazer festa, vai sair dessa, bexigas coloridas, língua de sobra e confete. Penso novamente em sorvete. Colapso nervoso disse o médico, tome cuidado e a pílula, anotado! “Não surte nunca mais, que susto você nos deu, palhaçada, acabou o show, queria aparecer, pinta a cara de melancia e dança ula-ula no sertão, patife”, essas foram algumas frases que ouvi, fora outras que minha memória fez questão de esquecer.

Recebo alguns telefonemas, os amigos de verdade se preocupam, vaidade, ajeito o cabelo no espelho, refaço os curativos, estou bem melhor, ouço a cigarra cantar, minha cadelinhas estavam com saudades recíproca, nunca me traem, ditado bom o dos cachorros como melhores amigos, frase feliz. A namorada visitou, tardiamente, muita labuta, tenho que entender. Por parte dos outros, os presentes ao ocorrido, como preferirem ao caos, me hostilizam, me condenam ao martírio, falta de compreensão, meu bule está enchendo demasiadamente, o próximo surto não está longe, coloco a segurança no alerta laranja, sem chupar, não posso deixar que isso aconteça, seria o meu fim, o fim prematuro de um malabarista da vida, oscilando entre o ressentimento e a falta de sentimentos, colocando na balança penderia pro pior lado, joguei a moeda pro alto, o destino é o juiz, cabe a mim escolher o lado agora. Penso naquele, sem volta.