SR. KEUNER, EU E O NÁUFRAGO
"Aquele que pensa não usa nenhuma luz a mais, nenhum pedaço de pão a mais, nenhum pensamento a mais".
Sr. K. (Bertolt Brecht)
Bertolt Brecht é sempre irresistível. Suas palavras descortinaram uma nova linguagem para o teatro, alcançando a indignação do público ao demonstrar a realidade e exigindo uma postura distanciada da alienação. As histórias do sr. Keuner, textos escritos durante 30 anos, são provas da genialidade do grande dramaturgo. Em textos sintéticos, Brecht, sr. Keuner ou Sr. K, denuncia atitudes a serem percebidas com mais comprometimento e faz cortantes críticas à sociedade alemã e ao comportamento humano geral.
Leio os textos num só fôlego, certa de que destinarei posteriormente um instante diário para a leitura de um texto do sr. Keuner, quase uma auto-ajuda para nortear minhas ações como subjetividade.
Seduzida irremediavelmente pelo sr. Keuner e com os pensamentos em brasa, começo a folhear o livro O Náufrago de Thomas Bernhard. A resenha da orelha me instiga e mergulho, sem proteção ou oxigênio, na narrativa arriscada do autor que tenta compor, no encontro de três jovens estudantes de música no Mozarteum em Salzburg, os motivos para o suicídio de um deles vinte e oito anos após. Um olhar pessimista que exibe um mundo de ódios, invejas, infelicidades e desencantos... Um gênio musical, um virtuoso e um pianista interessado... A interpretação de Variações de Goldberg de Bach pelo então estudante Glenn Gould, pianista canadense reconhecido internacionalmente pelo talento e por suas excentricidades, é testemunhada pelos dois colegas e será o motivo para o encerramento de suas carreiras, um desvendar do encantamento e do ódio, da admiração e da inveja. Uma gama de sentimentos rancorosos que culminará no ato extremo de um dos personagens e no depoimento sem interrupções do sobrevivente sem capítulos ou parágrafos.
Interrompo a leitura num entreatro do cotidiano, busco os sonhos, mas as seqüelas literárias despertam as inquietações numa noite insone. O pessimismo de Thomas Bernhard revela alguns personagens de minhas relações habituais marcados por risos debochados, ares dissimilados, pequenas provocações, invejas, mesquinharias... Nada mais desgastante do que conviver com personas que despertam a raiva e a deixam ferir os pensamentos encarcerados num silêncio bem comportado.
A madrugada afia o corte das percepções e a cólera preenche o corpo nos dentes trincados e em outras dores. Volto para leitura, busco refúgio no enredo de Thomas Bernhard para esquecer das minhas aversões entre as linhas dos personagens e não naufragar num mar de fúrias.
Amanheço com o texto do Sr. Keuner: ""Quando estou em harmonia com as coisas”, disse o sr. Keuner, “eu não compreendo as coisas, elas me compreendem.””
As palavras de Bertolt Brecht me dão um novo fôlego.