Uivos do Passado

Uivos do Passado

Vinte e quatro de Fevereiro. Faz uma semana que, sobre as cinzas do carnaval, a Imperatriz sagrou-se campeã do carnaval carioca de 1999.

Emigrante paraense, salgueirense, vagabundo compulsório da globalização e residindo no Rio saíra para caminhar pela “Princesinha do Mar”, para depois “pegar jacarés” no Arpoador. Seu caminhar foi interrompido, da mesma forma que seus devaneios de adolescente nas salas do colégio estadual que estudara, pelo declamar alto e forte de seu nome completo.

Ao sair de casa não imaginara que o dia pudesse ser tão generoso… A declamação fora feita por um amigo do tempo da brilhantina.

Ao abraçá-lo, o emigrante paraense ouviu seus próprios gritos, para celebrar a passagem de um dos blocos carnavalescos de Belém, “Quem São Eles”, pela Avenida 15 de Agosto, hoje Presidente Vargas. Gritos para festejar celebridades daquele momento “quem são eles, não sei, mas aquele é o Luís, jovem diretor do bloco, aquele outro é o nosso poeta maior, Waldemar Henrique e aquele exagero de mulher é a Marlene, versão cearense da mulata carioca…”.

Conversaram e se abraçaram várias vezes, como quisessem expressar a alegria e a gratidão por aquele dia, capaz de encher seus olhos com o viço da juventude e com doces imagens do passado.

Despediram-se, mas o emigrante continuou caminhando para o Arpoador.

Na caminhada, o vagabundo compulsório da globalização percebeu que aquele encontro funcionara como um combustível, para a verdadeira máquina do tempo – a mente. Assustou-se com o poder de magia do mental capaz de transportá-lo, e a todos nós, para encontrar o bom e o belo, sem qualquer restrição de tempo e espaço.

Ao mergulhar nas águas do Arpoador, foi seduzido pelos encantos da Iara e levado para um dos seus palácios encantados encobertos pelas águas da Guajará, baía que banha Belém, capital do Pará.

Haviam-lhe preparado um festão para que pudesse dançar com todos os seus amores. Passou dias e dias dançando. O salão, como um camaleão, transmutava-se nos diversos salões que frequentara na sua adolescência e juventude. Salões, que muitos deles nem mais existam fisicamente, mas que os encantamentos e a beleza de Iara conseguem reconstruir.

Como até nos palácios da Iara os músicos param para comer e beber e as festas acabam, o emigrante volta de seu mergulho. Entretanto, nem se refizera da magia do baile nas profundezas da Guajará e é enlaçado pela ponta da cauda da Boiuna (Cobra Grande), com o mesmo encantamento de quando ouvia as lendas amazônicas contadas por seu pai.

Aguarda a transformação da enorme cobra num navio de luzes. Deixa- se transportar pelas águas barrentas da sua infância e se atraca aos trapiches de sua adolescência.

Aporta em Óbidos, onde o Amazonas é mais estreito, mas mais profundo. Aconchega-se ao colo de sua mãe para aprender a diferença entre o ovo galado e o não galado, bem como quando colocar os ovos galados para chocar. Assiste ao milagre dos pintinhos romperem as cascas dos ovos e saírem para secarem-se sob a mamãe galinha-choca, para se transformarem em lindas pluminhas douradas.

Pára ao largo de Santarém, município paraense vizinho a Obidos. Contempla maravilhado o encontro do barrento do Amazonas com o azul do Tapajós. Acompanha com a menina dos olhos o balé dos botos.

Sobre os botos, ouve dizer que, tantos os escuros como os vermelhos, ajudam aquele que se encontra em dificuldades nos rios. Revive a emoção de quando ouviu que os vermelhos transformam-se em belos jovens e exímios dançarinos, para que possam seduzir inocentes donzelas e povoar as regiões ribeirinhas com os filhos do boto.

Atraca no trapiche do Mosqueiro, ilha hoje ligada por ponte à Belém, e dirige-se ao lar de sua primeira infância. Senta-se no chão da cozinha e deita um paneiro de sapotis colhidas do quintal e começa a saboreá-las como se o tempo não fosse o responsável pela construção do passado e do futuro. Corre pelo imenso quintal até encontrar um igarapé, onde nada em companhia de patinhos, plumas gemadas deslizando sobre as águas. Volta, pára junto ao poço, iça com o sarilho a um balde d’água, banha-se e espera um tempo para secar. Troca o calção molhado por um seco e corre para assistir ao Boi na casa ao lado, que ficava entre as praias conhecidas como Chapéu-virado e Porto Arthur.

Aproxima-se do vizinho, que mais tarde seria Prefeito de Belém, e agradece por ter-lhe proporcionado a alegria dessa festa, pois era ele quem contratava o Boi para seus familiares, amigos e vizinhos assistirem.

Quando as luzes, em forma de barco, resultantes da mágica transformação da Boiuna, passavam por Belém, num ímpeto atávico, lançou-se e pendurou-se no rabo com ponteira negra de um guinador (tipo de pipa conhecido como papagaio em Belém) “no treme” e sobrevoou a cidade, como um mendigo das lembranças de menino.

A hora-mistério se aproximava. O sol indeciso não sabia se ficava com o sol ou se cedia ao luar. Como todo bom guinador sabia que chegara o momento, para deixar sua linha ser enrolada por um garoto e esperar outro dia, outro “geral”…

Os dois desceram discutindo, pois o filho-visitante afirmava que, ainda, não eram seis horas, pois a sirene da Palmeira (padaria tradicional daquela época) não apitara.

A noite jogou seu suave brilho e a brisa guajarina desfilava pela 15 de Agosto, como fiéis no Círio de Nazaré, compacta e murmurando como se orasse.

Ansioso, saiu à procura das fogueiras onde tantas vezes celebrara São João.

Não podia perder tão rara oportunidade. Pela magia do mental, transportou seus filhos e sua mulher e os convidou para “passar fogueira”. Sob as chamas purificadoras da fogueira seus relacionamentos estavam sendo consagrados. Sua mulher e seus filhos passariam a ser, também, de fogueira. “Santo Antônio disse, São João confirmou que nos amaremos para sempre como pai e filhos, como marido e mulher, pois Jesus Cristo mandou…”

A noite é uma criança e quando se sonha torna-se mais longa. Conseguiu reunir todos os amigos do grupo escolar do colégio estadual e do serviço militar. Todos, inclusive aqueles que já desencarnaram, brindaram, com sorrisos pintados com o roxo do açaí, a alegria e a sorte de terem se encontrado nas fases da fantasia, dos sonhos e da poesia de suas vidas: a infância, a adolescência e a juventude.

O “vagabundo compulsório da globalização” sentiu o barco em luzes desaparecer e despertou sendo envolvido por um “caixote” na praia do Arpoador. Voltara ao presente, voltara como emigrante ao Rio.

Era hora de retornar para casa, “a batata deveria estar assando”... Caminhou para pegar condução e, só percebeu a minha presença, seu companheiro de serviço militar, já no ponto de ônibus.

Sentamos juntos e meu conterrâneo narrou-me toda essa aventura, que não pude deixar de registrar. Narrava com tamanha ansiedade, que não tive a menor oportunidade para interromper.

Finalizou com um olhar mendigo, implorando que lhe respondesse afirmativamente: “mano velho estiveste na nossa reunião”?

Não pude deixar de entrar nas correntezas das águas de sua fantasia. Respondi-lhe: lógico que estive presente. Fui nas asas de um Pássaro Junino (outra lenda amazônica) que, a teu pedido, veio me apanhar. Voltei contigo na carona da Boiuna, transformada em barco de luzes. Como bem percebeste, quando se está no navio-luz da Boiuna, é tanta luz que a única coisa que podemos fazer é sonhar…

Mas o inusitado demonstrou-me que existe um salto quântico, quando sonhamos.

Mal acabara de chegar, meu conterrâneo telefona e, sem conter a emoção, aos prantos me conta que, ao chegar em casa, foi recebido por duas cobranças, uma da mulher e outra, em coro, dos dois filhos:

- maridão de fogueira, porque demorou tanto para chegar?

- paizão de fogueira está faltando comprar açaí …

Não creio nas bruxas, mas que elas existem, todos nós temos essa certeza...

J Coelho
Enviado por J Coelho em 25/10/2009
Código do texto: T1886974
Classificação de conteúdo: seguro