Cotidiano: uma família feliz
Começo o texto sentado em um banco, jardim lindo, pássaros coloridos sobrevoam minha cabeça, libertinagem na calçada em frente, táxi amarelo, motorista barbudo com um singelo pingente cor de lima. Senta-se uma jovem ao meu lado, pernas bem torneadas, saia jeans minúscula, tentadora, me convidando a arrancá-la. Uma revista retirada da bolsa, uma formosa capa de modelo, folhas e mais folhas são reviradas. Um decote insinuante, o clima fica quente, começo a suar. Abro o primeiro botão da minha camisa, peito cabeludo, mulheres adoram. Quem raspa tem tendências homossexuais. Ao longe, um rapaz se aproxima, cabelo ajeitado, camisa xadrez, sapatos brilhantes; fala com a moça algo que não entendo, ela grita, xinga, ele vai embora com a cabeça baixa, ombros arqueados.
Ela chora, é morena, borra a maquiagem, fica ainda mais linda. Uma senhora escorrega e cai, vou ajuda-la, boa ação, vou para o céu. A moça sorri quando eu volto, sexo ronda a minha cabeça. Seu cabelo é sedoso, coloco a mão, acaricio. Ela ainda emocionada encosta sua cabeça no meu ombro, êxtase, emoções exacerbadas, conquista? Tenho calma, sou consciente. Pergunto o seu nome, “Clara”, lindo nome, idade, “21 aninhos”, na flor da idade. Alma aliviada, esperanças renovadas, ela não é menor de idade. Badaladas do sino, buzina do ônibus, corre-corre desenfreado, suor, calor. Arranco uma rosa, maldade, tadinha da flor, entrego a minha Clara, ela aceita, sorri, parece estar apaixonada. Olha no relógio, diz estar na hora de ir embora, promete voltar no dia seguinte, mesma hora. Agradece a minha companhia, parte.
Nuvens, tempo mais frio, sem decote, sem mini-saia, ela aparece. Me traz um bombom, chocolate, peço desculpas, não tinha levado nenhum presente. Catadores de lixo, uma visão triste, um se aproxima, esmola, dou 1 real, agradece e vai embora. Clara mora sozinha, perto da minha casa, tem a alma nobre, é sofredora, precisa de um homem. Recém saída de um relacionamento conturbado, apanhava muito, cara covarde, prometi quebrá-lo, sou valente, nunca perdi uma briga na vida. Dentes quebrados, olho roxo, hematomas, muito comum na minha infância. Doce menina, roubou meu coração, barbeador enferrujado, barba mal feita, medo. Medo de beija-la, rosto macio, lixa, machucado, incômodo. Ela é corajosa, me beijou, apressadinha, deve ter lido o meu pensamento, aproveito, minha mulher, noiva, véu, grinalda, padre, igreja, casamento, filhos, que a morte nos separe.
Um vira-latas bem brindar nosso união, branquinho, magrinho, uma graça. Garoa, alguns raios, a chuva aperta. Nada importa para nós, estamos molhados, quentes, apaixonados. Pessoas correm para se esconder da chuva, poças se formam, tempo passa, ela diminui a intensidade, para. Falo com Clara que precisamos trocar de roupa, levo-a para minha casa, dou-lhe uma toalha e uma roupa limpa, biombo, frestas, vejo seu corpo nu, meu membro fica excitado. Sexo. Nos encontramos vários dias seguidos, namoro sério, primeiro jantar com os pais dela, segundo jantar com os pais dela, terceiro jantar com os pais dela, falta coragem, sou valente de briga, covarde no amor. Quarto jantar com pais dela, pedido de casamento, celebração, animação, sou querido por sua família, aliança de noivado, custou caro, ouro maciço, ela merece, não me importa o dinheiro, foi feito para se gastar.
Igreja cheia, muitos convidados, benção do padre, “aceita Clara como sua legítima esposa?”, sim. Confetes, emoção, cumprimentos, pedidos, promessas, carro chique alugado, latinhas fazendo barulho atrás, beijos. Passaporte nas mãos, viajar é sempre bom, ainda mais na lua de mel. Noite de núpcias, bebemos champanhe, brindamos nossa felicidade, pensamentos futuros, filhos, despesas, cotidiano, outras viagens, mais juras de amor, que seja eterno e que Deus abençoe. Volta, agora é nossa casa, decorador, compra de móveis, muito dinheiro gasto, visita dos vizinhos, lanche apetitoso e caprichado, café da manhã na cama, banho juntos, compartilhar a televisão, novela x futebol, sempre entramos em um consenso.
Ela fica grávida, nosso primeiro filho, é um menino lindo. João ou Pedro? Vai se chamar Pedro, menino esbelto e inteligente, puxou o pai e a mãe. Segundo filho, é uma menina. Laura ou Neve? Vai se chamar Yasmin. Linda como um campo florido. Essa puxou a mãe. Choro, noites em claro, trocar fraldas, educar. “Pai, quem criou o mundo? Da onde em vim? Por que o céu é azul? Cogumelos são venenosos?” Respostas... “papai é o meu herói”. Ir pra escola, ensinar a lição, preocupação com as notas, merendeira colorida, material de primeira. Meus filhos merecem tudo o que eu possa dar. As crianças crescem, ficam rebeldes, adolescência... “Quero voltar tarde, quero viajar, quero mais dinheiro”, não aceitam “não” como resposta. Maquiagem, jaquetas de couro, piercings, tatuagens, namorados revoltados, namoradas mimadas, fico de cabelo em pé, Clara aceita tudo, mão na cabeça, muito mimo faz mal, porém é importanta. Independente dos problemas é uma família feliz.
Vestibular, faculdade, trote, ele passou em letras, um pouco depois ela passou em educação física. Livros, eles trabalham, se esforçam, recompensa, se formam. O tempo passa, Pedro sai de casa, montou sua própria, Yasmin vai um pouco depois, casou com um italiano, Veneza. Muitos anos se passam, eles nos visitam, algumas doenças, problema de idosos, os netos estão crescidos, nos adoram e adoramos eles. A vida foi generosa comigo, não tenho do que me queixar, em breve vou morrer, meus filhos também, anos mais tarde. Não terminarei o texto com a minha morte, nada de memórias póstumas, estou vivo, penso, respiro, coço o nariz e escrevo.