O vendedor de milho e o degustador de almas
O preto robusto, vendedor de milho, cozinhava-a por minutos a fio. Com o olhar, degustava suas formas alvas provocantes. Não sei bem sobre o que conversavam, nunca a perguntei. Talvez sobre guloseimas; ela, quem sabe, falando das proteínas do milho, que um enorme bem parecia fazer ao seu corpo; ele, corroborando-a, comendo-a com os olhos enquanto pensamentos lascivos pegavam carona na manteiga, deslizando sobre a espiga rumo àquela boca insinuante.
Ela fazia questão de saia curta. A blusa transparente delineava os traços dos seios fartos. O busto acentuado complementava a cintura delgada, dando-lhe uma silhueta sedutora: olhar lascivo com semblante de ingenuidade... do jeito que o diabo gosta!
O mancebo “branquelo”, aprendiz de pastor, não a perdoava:
- Essas mulheres lascivas que andam por ai.... no fogo do inferno... capítulo... versículo... Aleluia!
Entre uma mordida de milho e outra fui criando coragem. Espiga amanteigada, excitação endemoniada sob a censura do “pastoreba”:
- Milho tem feito bem a sua saúde, hem, moça...!? - Olhar cabisbaixo, a sensação de espinhas estourando novamente no meu rosto enquanto o medo adolescente ressuscitava diante do pregador raivoso:
- Maldito seja o homem que só pensa nos desejos da carne, pois tá escrito... no fogo do inferno... capítulo... versículo... Aleluia!
O sorriso amanteigado veio de bom grado; insinuante! Era o início de uma amizade sob a reprovação do homem e suas bravatas religiosas. Procuro me esquivar desse fanatismo religioso através da crença em um Deus ameno, mais humano, entendedor dos nossos instintos por Ele criado. Diante da intolerância dos homens sobre comportamentos alhures, procuro apegar-me em fragmentos bordados de conceitos mais terrenos: "...a consciência nunca se opõe ao instinto de maneira decisiva; para além de Bem e Mal..."
- Vocês se arrependerão. Maldito é o homem que vive pela carne... no fogo do inferno... capítulo... versículo.... Aleluia!
Messalina e eu na espera diária do seu ônibus – que nome mais apropriado para um ser tão... comedido. A rotina fragmentada pelo meu tesão resguardado. O pastor atrás, berrando, torcendo por uma nova barca de Nóe:
- “Ainda dá tempo, o fim dos dias não tardará a vir... o juízo final... no fogo do inferno... capítulo.. versículo... Aleluia!
Um dia, ela sumiu. Procurei-a em outras paradas; em vão. O pastor com novo discurso, crivando todos com seu olhar de censura e de dono da verdade:
- Não desejareis a mulher do próximo.. no fogo do inferno... capítulo... versículo... Aleluia!
- E se o próximo não estiver próximo...hem, pastor! - O pensamento lascivo atordoando meu lado menos humano. A fuga dos meus disformes instintos em não querer entender esse pedantismo do fanatismo religioso que se prolifera nos centros das cidades e nos templos milionários.
O vendedor de milho também se escafedeu, soube que se havia convertido à Igreja do "pastoreba". Fez viagem contrária à minha fuga inevitável: passou a cuidar do templo e da casa do pregador. Vez por outra, aparecia para dar seu testemunho de homem salvo - dono agora de um loteamento no céu. Talvez tenha se arrependido das suas lascivas conversas com Messalina.
Já se ia bom tempo da ausência, o tormento do instinto corroendo meus dias. A consciência querendo reacender meu lado demoníaco; confrontar meus pecados junto à pregação de um deus não entendido... cada dia mais raivoso! Estendi-me até o calvário. A mesma rotina degoladora de mentes. Em um cantinho, lá estavam: Messalina, o vendedor de milho e uma criança nos braços da minha última tentação. Agora, vestido longo, blusa comedida escondendo a exuberância dos peitorais.
- ... no fogo do inferno... capítulo... versículo... Aleluia!
Só ouvi do menino a primeira palavra dirigida ao pastor em êxtase:
- ...papai...!
Um anjo apocalíptico evangélico, de espada em punho, pôs-me a correr enquanto um turbilhão de pensamentos se confrontava com meus princípios religiosos.
- ...não desejeis a mulher do próximo.... cuidado com o fogo do inferno... capítulo... versículo... Aleluia!
Na fuga, ainda me dei conta do biótipo da criança: "Pretinha", como talvez seja a cor de um ser superior nunca aguardado.
Passei a buscar fagulhas de entendimento diante das atitudes do comportamento dos instintos humanos, além da compreensão do bem e do mal, e concluo: não sou diferente, os outros é que são iguais.