VOZES DA PRIMAVERA
É sempre rigoroso nosso inverno e este que passamos foi especialmente frio e chuvoso, nem sei bem se já passamos. As baixas temperaturas mixadas por intermináveis surras de pingos de todas as bitolas mexeram não só com a saúde da gauchada, mas também com os humores. Já andávamos medrosos pelos demais cagaços cotidianos e agora estamos ainda mais introspectivos, rabugentos e encasulados do que éramos. Aqui jaz um urbano cidadão das ruas, cavaleiro de muitos sapatos que somente abriu mão das pantufas sob protestos e por motivos que realmente valeram à pena. Chuteiras e tênis decididamente mofaram com o suor do último sol.
Passei por este inverno me enxergando na pele de um bravo guerreiro farroupilha armado de frágeis aquecedores. Travei desigual batalha contra o império da umidade, cumprindo a saga trágica da idade do condor. Não houve negrão chileno encorpado, de sobrenome francês, de boa safra e casta nobre que pudesse me proteger. E com relação à tarefa másculo-hibernal de aquecer o leito para a mulher amada utilizando apenas os parcos recursos próprios “já era”, virou proeza. Mas claro, socorri-me de artefatos sintéticos mais eficazes sem, no entanto, abrir mão dos méritos. É, sobretudo, importante (e como sobretudo foi importante!) que provectos transeuntes da casa sagrada dos cinqüenta continuem exibindo temperaturas de vinte a qualquer custo. Sou bagual que não se entrega... Assim no más (ô psit, caiu um lençol térmico aqui: sempre que busco subterfúgios para não me entregar, vem-me à cabeça a nefasta Camille Paglia e sua tese de que mulher não vive sem homem apenas por que vibrador não sabe cortar grama. Aquela nojenta!).
O Criador, bairrista incorrigível e mais gaúcho do que brasileiro, bem que poderia durante o inverno nos brindar com cotas mais generosas de sol. O mínimo para compensar a penitência de nos fazer gostar de viver por estas plagas. No entanto, talvez seja por este processo de pasteurização que tenhamos os melhores índices de longevidade do país. E quem me garante que, caso adotemos também uma dieta rica em água oxigenada e soda cáustica (compostos detectados em alguns leites longa vida), não venhamos a encontrar, por fim, o caminho da vida eterna?
Quando a primeira florzinha curiosa enfiou seu botão por entre as folhagens dando início a sinfonia de espirros dei, por fim, graças por ter vencido mais um agosto. Este é o marco que autentica nossa capacidade de sobrevivência e então parece que voltamos a ser brasileiros. Era! Já é outubro e as vozes da primavera se confundem nesta Porto dos ventos uivantes. Fora os pingos que congelam e despencam em blocos do céu, como se o Criador e seu capataz Pedro (aliás, deveria ser nosso parceiro) nos quisesse enfiar goela abaixo incontáveis metros cúbicos de uísque ruim.
O Criador é gaúcho, quer nos pasteurizar. Quer que fiquemos mais tempo por aqui. Apesar desta tendenciosa preferência, a cada inverno como este e pensando no incontrolável avanço dos inços brancos sobre a antiga e farta pastagem capilar, que não se conformam em infestar sozinhos, isto deixa de ser um privilégio.
Jair Portela