CAMINITO
Para Mira
Por insistência do marido, aceitou o convite para passar sete dias em San Telmo e percorrer novamente as ruas históricas da capital de Carlos Gardel, de Cortázar, de Borges, de Ernesto Sábato e de Roberto Arlt. Subiria e desceria pelas quase duas dezenas de livrarias da Calle Florida ou escolheria um café pouco barulhento para se perder em algum romance.
A viagem começara mal: tomara um banho de lama quando um táxi afundara o pneu em um buraco na frente de sua casa, o vôo atrasara quatro horas e meia e, dentro do avião, um comissário criou problemas com as autorizações dos netos.
Como se não bastasse, o avião entrara em Porto Alegre para solucionar um problema mecânico e o trajeto, deveria se encerrar às quatro e quinze da tarde argentina, terminou por volta das treze horas do dia seguinte. O marido gemia de dores estomacais.
- Bem que falei para não virmos, dizia para si mesma, enquanto procurava remédio mais forte na mala desarrumada sobre a cama e tentava o número dos netos, deixados dois andares abaixo.
Quando os dedos deslizavam no teclado do telefone, três socos fortes e seguidos ecoaram da porta. O gerente reclamava da bagunça dos netos cujo apartamento estava desfigurado: a janela interna e o espelho do banheiro quebrados, os colchões jogados ao chão, duas cadeiras de pernas destruídas, suporte, fios, aparelho de DVD e de TV destroçados.
Ordenou que arrumassem a bagunça e, em seguida, refizessem as malas. Voltariam a Presidente Prudente naquele mesmo dia ou no dia seguinte, mesmo que tivesse que pagar multa pesada. Desceu à recepção, desculpou-se com o gerente e pediu que providenciasse as passagens. Ficasse tranqüilo. Pagaria integralmente as diárias.
Saiu em busca de um restaurante, três quarteirões abaixo. Desde a véspera ingerira apenas café, água e suco.
Assim que entrou, o pai transpassou a memória: lembrava dele, anos atrás, sentado numa mesa de canto. A mãe, ela e as três irmãs visitavam Buenos Aires pela primeira vez e, encantadas, ouviam-no atenciosamente falar de Borges.
- O maior escritor do mundo, falava o velho, bebendo elegantemente café sem açúcar.
Um café sem açúcar numa xícara pequena e um copo de água gelada fizeram-na recordar das preocupações paternas: sumiço da irmã com um argentino de olhos verdes, demora de outra irmã que saíra em busca de um livro, mãe e irmã que saíram cedo para o zoológico e, na volta, detiveram-se no comércio e esqueceram as horas. Puerto Madero e as advertências contra os aproveitadores. Lembraria do pai cantando Caminito se, no momento em que seus pensamentos se perdiam nos labirintos da memória, um cantor não encetasse e os clientes não o acompanhassem: “Desde que se fue/ Triste vivo yo/ Caminito amigo/ Yo también me voy”.
Vislumbrou em volta, os olhos umedeceram, os sentimentos se confundiram, os apuros dos netos misturavam-se às travessuras das irmãs. Ao lado esquerdo do palco improvisado, um homem - terno creme, gravata vinho e lenço vermelho destacando-se no bolso do paletó – cantava empolgadamente. Um homem visto apenas por olhos de felicidade. Um homem escutado apenas por ouvidos poéticos. “Desde que se fue/ Nunca más volvió/ Seguiré sus pasos/ Caminito, adiós”.
À entrada do hotel o gerente informou das passagens para o fim da noite. Um micro-ônibus os levaria ao aeroporto.
Fitou as passagens pulsantes, sorriu discretamente, agradeceu o esforço. Subiria ao andar dos netos. Desfizessem as malas. “Desde que se fue/ Nunca más volvió/ Seguiré sus pasos/ Caminito, adiós”.
*Publicado originalmente no Jornal de Assis (Assis – SP) de 22 de outubro de 2009. – www.vicentonio.blogspot.com