Observações acerca do (semi)nomadismo

<i>PUBLICADO ORIGINALMENTE EM http://dacarpe.wordpress.com</i>

Hoje lembrei de quando conheci Henrique. Negro, mais ou menos 1,70 metros, magro, imundo e com um carisma contagiante. Morava com a família na rua. Levava uma vida seminômade pelas ruas da Tijuca e arredores. Nascido, criado, educado, espiritualizado e ambientado na rua, sustentava, com a renda do lixo que catava com a mulher e dois filhos, o mais velho de 6 anos de idade, o mais novo recém-nascido.

Henrique recebeu-me com um sorriso meio desconfiado, arisco, fazendo-me pensar que o sorriso é uma marca sua e a desconfiança uma marca imprimida pela rua. Recebeu-me em um cubículo cercado por caixotes de madeira velha e carcomida; chamava aquele espaço de casa. Entrei sob a recomendação de ficar a vontade. Segurava em minhas mãos as duas quentinhas que eu fora entregar, enquanto meu pai esperava no carro ligado. À esquerda jazia jogado um monte de papelão; em cima dele o bebê dormia aos olhos auspiciosos da mãe. O mais novo tentava brincar com uma caixa de pasta de dentes atravessada com uma tira de papelão; era um avião.

Alçava voos imaginários e fazia manobras incríveis a mente de Henrique. Sentado já em um pedaço de madeira no chão, eu estava a vontade. Perguntei de sua vida e me disse que não via sua mãe desde os 6 anos de idade. “A idade de seu mais velho”, disse eu. “Este risco ele só corre se ele quiser”, me respondeu. Aquela colocação me surpreendeu por tamanha responsabilidade ser atribuída a uma criança daquela idade. “Na rua se aprende tudo muito cedo”, fez uma breve pausa, “tudo”, arrematou. Pude perceber ao longo da conversa que Henrique tinha um ar de amargura que era comum aos que vivem na rua, mas que também conseguia preservar e nutrir certo entusiasmo, este sim raríssimo. Questionei-o sobre isso, “Deus está ao meu lado”. Admirei a afirmação convicta. Seu Deus era ao mesmo tempo o que o mantinha vivo e o Senhor de seu sofrimento. Na época tomei aquilo como um aprendizado amargo. Se Deus é tudo, também é sofrimento. Deve haver algum sentido no sofrimento.

Em certo momento começava a dissertar sobre a noite na rua. Enxergava beleza na noite. Dizia, mesmo sem nunca ter tido casa, que o silêncio na rua deveria ser mais bonito. “A madrugada na rua é mais aberta, sei lá”. Compreendi a afirmação como se quisesse dizer “mais livre”. Falou das vezes que escapou à morte na noite. Que aprendera a dormir com os olhos abertos. Via beleza nisso. E para minha mente de apartamento era impossível acompanhá-lo.

Meu pai buzinava lá na frente. Olhei-o e ele me retribuiu com olhos de condenação. Fiz que esperasse mais um pouco, a tempo de perguntar uma última coisa a Henrique, enquanto sua mulher já preparava o almoço que eu levara. “Você consegue ser feliz na rua”? “Você conhece alguém que seja feliz”? Não, é verdade. Conheço pessoas que estão feliz. E esta diferenciação, que a língua portuguesa, ao contrário das suas “irmãs”, permite fazer, Henrique tinha de prontidão. Creio que este deve ter sido um dos aprendizados que que a rua lhe proporcionara cedo.

Levantei-me, e ele fez o mesmo. Agradeci, ao que ele achou um absurdo; segundo Henrique, ele que deveria fazê-lo. Agradecemos um ao outro, portanto, e estendi a minha mão para despedir-me. e então, neste momento, senti tensão em Henrique. O sorriso se apagava e os seus olhos fitavam minha mão estendida como que a um prato de comida. Espantado, Henrique subiu os olhos até mim e eu, sem jeito, perguntei se havia algum problema. “Ninguém me toca; as pessoas acham que eu sou sujo”; na verdade, naquele momento Henrique quis dizer que as pessoas acham, não que ele era sujo, mas a própria sujeira. Consenti internamente com a informação, sem deixá-lo perceber. “Mas eu não”, disse. “É…”, respondeu, enquanto o sorriso voltava timidamente. Apertou a minha mão com a sua calejada ao extremo, poeirenta, pesada, e tocou-me o ombro com a outra.

Muito tempo depois entendi Henrique. Na verdade menti a ele. No fundo, pensava-o como uma espécie de invasor, de estrangeiro. Como alguém que está no lugar errado, enfim, como sujeira. A sujeira marca, a sujeira suja. Me sentia imundo. A marca que deixara em mim era a da vergonha de ir embora e voltar para minha vida de apartamento sabendo que Henrique existia. Ele nunca mais saíra de mim.

Andando para o carro, olhei para trás e vi Henrique sorrindo e acenando um adeus de quem não estaria mais ali amanhã, com a mesma mão que apertara a minha.

Dacarpe
Enviado por Dacarpe em 21/10/2009
Código do texto: T1879256
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