Soares

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Havia algo de proibido no Soares. Íamos escondidos e encolhidos, combinados de nada contar a nossas mães. Vestíamos roupas cinzas e usávamos bonés. Tudo para que não descobrissem que estávamos ao caminho da perdição.

Soares era o dono do fliperama; era tão conhecido entre nós como o dono do depósito de bebidas era para os adultos. Toda a adolescência da região ia se encontrar lá. Todos gastando o dinheiro do lanche no recreio economizado da semana inteira. Todos com fome, mas com os olhos atentos nas telas em que homens voavam, bichos lutavam e princesas aguardavm eternamente em um castelo ao lado de um dragão qualquer. E o Soares atrás de uma mesa contando o seu eterno dinheiro. Havia um pouco de João Romão em Soares.

Lembro a primeira vez que fui lá. Montou-se toda uma operação por parte de meus amigos que já haviam ido algumas vezes. Eu seria iniciado. Recomendações foram feitas, não fale nada, não grite que o jogo é legal senão te acharão babaca e me olharão torto, não compre um monte de fichas de uma vez, não jogue com brutalidade no fliper, não apareça de blusa de escola, enfim, uma série de conselhos para quem nada sabia sobre o assunto. Saí de casa dizendo a minha mãe que iria pra casa de um amigo que ficava dois andares acima; bastaria um telefonema para o desmascaramento. Eu e outros dois amigos, meus padrinhos nesta cerimônia de batismo, saímos de casa aos entreolhos, vigiando a rua com medo de que pudéssemos encontrar algum denunciante. Duas quadras depois estavamos na porta do Soares. Era na esquina. A esquina o tornava um lugar ainda mais perceptível, o que era fonte de preocupação de todos. Passava ali todos os dias e nunca tinha atentando para o fato de que ali dentro era muito escuro. Paramos na porta, olhamos em volta, meus dois amigos entraram. Tomei coragem e entrei. Um clima de sociedade secreta instaurou-se. Todos olharam-nos, como que questionassem quem era o instruso. Retirei, finalmente, o boné. Todos me olharam nos olhos. Meus amigos chamaram-me para um canto onde dois caras jogavam um jogo de luta e ficamos olhando. Um de meus amigos foi comprar fichas enquanto eu olhava. Quando voltou deu uma ficha para meu outro amigo e se prostaram bem próximos. Questionei, cadê a minha ficha? Ele respondeu, você não vai jogar hoje, fica quieto e assiste. Entendi que era minha iniciação e, puto, calei-me. Eles jogaram por vinte minutos e eu fiquei quietinho, só olhando. Fui para o Soares para olhar.

Nunca joguei no Soares. Nunca mais voltei lá. Tinha medo. Não de ser descoberto por minha mãe, afinal a infância/adolescência é feita deste delicioso perigo, mas de não ser aceito naquela espécie de maçonaria de flipermaníacos. Os olhares, será que me condenariam; o rito de passagem, será que haveria mais, ou que eu deveria agora levar cascudos de todos antes de jogar? Fui ao Soares uma vez para olhar. E após isso, aquele desejo do proibido, ou até mesmo o proibido desejo esmilinguiu, desfaleceu. Era um iniciado sem a vontade de prosseguir.

O Soares acabou sendo uma espécie de símbolo do proibido. E meio que ensinou-me que o proibido só é bom a distância. E que isto não é regra. Hoje o Soares ainda existe. Hoje é uma mecânica de bicicletas, com o velho Soares atrás de uma mesa contando moedas. Hoje o segredo morreu, a sociedade morreu e tudo aquilo que era o Soares foi-se embora. Hoje é tudo mais fácil e o proibido é meramente um obstáculo. Mal-aventurados os que não conheceram o Soares.

Dacarpe
Enviado por Dacarpe em 21/10/2009
Reeditado em 21/10/2009
Código do texto: T1879249
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