UM TIRO NO PEITO
Eu estava com doze anos quando meu irmão mais velho levou um tiro no peito. O pior de tudo é que o fato se deu sem qualquer razão de ser, inexistindo motivo, por um simples gesto inconsequente e impensado de um adolescente morador da casa em frente à nossa. Foi um acontecimento terrível que chocou a todos nós naquele inesperado momento de angústia. As lembranças dessa ocorrência estúpida se tornaram nebulosas com o passar dos anos, é bem verdade, mas ainda recordo alguns detalhes e como o lamentável incidente resultou numa correria desesperada de muita gente, além de muito choro, tristeza e arrependimento. Pela surpresa que causou, o tumulto gerando caos na vizinhança e a confusão seguida ao acontecimento, o caso tornou-se assunto comentado durante muito tempo por todos os moradores do bairro.
Passava das dezesseis horas, estávamos eu e meu irmão Gilson sentados na calçada de nossa casa conversando banalidades, olhando quem passava - especialmente as garotas bonitas do bairro - quando, subitamente, Ivan, nosso vizinho, surgiu do outro lado da rua segurando uma espingarda de caça usada pelo pai dele nos fins de semana. Ostensivamente exibindo a arma como se fosse o próprio caráter ou o coração dele, andando de um lado para o outro da calçada, apontando para cima e para baixo e parecendo possuir todo poder do mundo por estar armado, Carlos talvez esperasse elogios por sua "bravura" ou algo parecido. Como não tínhamos o menor interesse naquela atitude ridícula, também porque não era de nossa conta, a princípio não demos qualquer atenção a ele, o que certamente o perturbou pois lá de onde estava gritou a plenos pulmões "Ei, eu estou armado de espingarda!" Nós simplesmente olhamos para ele e sorrimos desinteressados. Carlos percebeu nossa indiferença e deve ter ficado furioso ou, ao menos chateado.
Naquele momento, acredito, o desejo de mostrar que poderia atirar em qualquer pessoa ou demonstrar a força e valentia proporcionadas pela arma deve ter passado pela cabeça daquele jovem subitamente armado e inexperiente. Para ele nossa desatenção, que talvez não esperasse, era uma afronta merecedora de uma resposta à altura. Assim, sem pensar duas vezes, apontou a espingarda na nossa direção e eu vi sua determinação em cumprir a loucura de praticar o ato insano. Só tive tempo de pular para o lado gritando que meu irmão também saísse do ângulo da arma, mas não houve tempo para ele. Carlos atirou no mesmo instante em que gritei dando um salto espetacular. Meu irmão foi atingido diretamente no peito e caiu na calçada. Carlos não acreditou no que fez e viu a seguir, jogou a arma no chão e correu em nossa direção chorando. Eu agarrei meu irmão ensanguentado e gritei por socorro. Levado para o hospital, descobriram várias bolinhas de chumbo incrustadas na epiderme dele. Depois de ser castigado pelo pai, Carlos disse que pensava que a espingarda estava descarregada, por isso tinha atirado pensando somente em fazer uma brincadeira. Meu irmão passou a vida inteira encontrando caroço de chumbo no corpo mesmo depois de terem extraído tantos no pronto-socorro. Quanto a Carlos, nunca mais pegou numa arma enquanto moramos no mesmo bairro. Já eu, guardei essa quase tragédia na lembrança como uma grande lição, a de que jamais devemos brincar, em nenhum momento sequer, com arma de fogo, e nunca, nunca mesmo, imaginar que essa invenção infernal possa estar descarregada.